Em atitude rara, nosso blogue desmontou as narrativas de que o culturalismo presente nas redes sociais e no cotidiano brasileiro de hoje em dia seria uma manifestação espontânea da vontade popular, como se nosso sistema de valores fosse tão fluente quanto o ar que respiramos.
Na verdade, desde 1974 o sistema de valores velho e antiquado começou a ser repaginado e adaptado a novos contextos por uma elite que envolve executivos da mídia e do entretenimento. Parece absurdo, mas muitos dos hábitos, crenças e até vocabulários hoje presentes nos brasileiros vieram das mentes dessas elites do poder econômico e cultural.
Se uma gíria como "balada", jargão privativo da Faria Lima, foi propagada pelo esforço desse consórcio midiático e empresarial, o mesmo que impede que a expressão bullying seja substituída pela forma em português de "valentonismo", vemos o quanto nossos "conscientes" homens de negocios e seus coaches porta-vozes calculam estratégias até para garantir as risadas de universitários e estudantes de ensino médio (os antigos secundaristas) no seu dia a dia.
Eu pesquisei, ao frequentar as redes sociais, a observar o cotidiano das pessoas e a observar o comportamento da mídia, que vivemos um culturalismo vira-lata enrustido, e que as narrativas que prevalecem, independente do plano ideológico, estão de acordo com a velha ordem social que se ascendeu com a derrubada de João Goulart e se consolidou com o "milagre brasileiro".
Hoje boa parte dessa sociedade, sobretudo através de seus herdeiros diretos - gente geralmente nascida depois de 1960 - , cooptou as esquerdas e atua num processo de domínio social definido como "poder suave" (soft power, em inglês), posando de "democrática" e pedindo "mais união e amor", como uma cortina de fumaça para abafar as injustiças sociais.
Isso influi no processo de domesticação social do povo pobre, que inclui a degradação gradual dos miseráveis extremos - como favelados e moradores de rua - , o desprezo aos camponeses e proletários e a mera instituição da caridade paliativa, que torna a miséria "suportável" sem que as raízes crônicas da miséria fossem dignamente resolvidas.
E aí chegamos à religião, na qual as instituições patrocinadas pela ditadura militar - a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Federação Espírita Brasileira - para combater a Teologia da Libertação católica, que atuava como uma frente de oposição ao poder ditatorial, tornaram-se ferramentas no contexto religioso da polarização em que vivemos.
Sabe-se que as narrativas em torno do obscurantismo religioso foram apenas parcial e unilateralmente difundidas. De fato, os chamados "neopentecostais", ou seja, instituições evangélicas de tendência pentecostal que utilizam a televisão como meio de manipulação e poder, praticam extorsão sobre os fiéis e são dotados de profundo reacionarismo ideológico, tendo apoiado abertamente o governo Jair Bolsonaro (2019-2022).
Mas falar dos abusos de Edir Macedo, R. R. Soares, Silas Malafaia e Valdomiro Santiago tornou-se lugar tão comum que as críticas e denúncias ao uso abusivo da fé, de repente, se estacionaram nas narrativas que restringem o obscurantismo religioso aos neopentecostais, como se o pensamento crítico pudesse repousar nos chutes aos "cachorros mortos" do imaginário coletivo.
Só que o obscurantismo religioso não se reduz a isso e, em que pese o fato de que Silas Malafaia e companhia realmente cometeram suas ações abjetas, ofendendo a tradição da religiosidade cristã, há também um interesse oculto para tamanha campanha, mesmo que ela se fundamente em denúncias verídicas.
Esses interesses ocultos vêm das elites empresariais que não podem "lavar dinheiro sujo" em instituições "fechadas" que são as seitas neopentecostais. Além disso, a associação a essas seitas que se movimentam pelo raivismo poderia trazer risco à "boa imagem" do empresariado e sua suposta preocupação com a "responsabilidade social", diante da associação dos neopentecostais ao bolsonarismo e à sua lógica de violência tão conhecida.
E aí o que esse empresariado faz? Promove, como supostas alternativas "viáveis" de religiosidade "moderna" e "ecumênica" - ou seja, com pretensões de cooptar até mesmo ateus e agnósticos - , religiões até mais obscurantistas que os neopentecostais, mas que se baseiam em uma cosmética de mansidão e uma máscara de simplicidade que se sustentam a partir de um verniz de "dedicação de amor ao próximo".
Instituições como a Legião da Boa Vontade e o Espiritismo brasileiro, com sua federação nacional e seus órgãos regionais, são representantes da burguesia que vê nessas entidades uma forma de receber "lavagem de dinheiro", sob a desculpa da "assistência aos mais pobres", dentro da perspectiva de dominação e domesticação dos oprimidos, diferente das ações emancipadoras da Teologia da Libertação católica.
Com isso, tanto a LBV quanto o Espiritismo - que apelido de "Catolicismo medieval de botox" - , mesmo com seu obscurantismo religioso explícito, tentam se vender como "crenças modernas", chegando mesmo a tentar se equiparar com as crenças orientais no que se refere ao atendimento espiritual das pessoas, o que é um grande engano.
As duas religiões, que representam uma estética não-raivista, se vendem erroneamente como "progressistas", mas suas crenças remetem ao Catolicismo dos tempos do imperador romano Constantino, baseados na aceitação da desgraça humana como "caminho mais curto para Deus". A base dessas duas instituições, LBV e FEB, é a Teologia do Sofrimento, corrente radical do Catolicismo medieval, difundida no Brasil a partir do movimento jesuíta, reabilitado pelos "espíritas".
Há até uma narrativa seletiva que devemos prestar atenção. Para os ricos, o Espiritismo brasileiro (e a LBV, por associação a níveis de afinidade ideológica) promete a seus seguidores a "felicidade fácil das coisas simples da vida", ocultando dos prósperos a narrativa que difundem para os mais pobres, que é aceitar a desgraça extrema e se contentar com paliativos, sob a promessa de que, no "outro lado da vida", eles terão prosperidade e bonança.
Pouco atuando para transformar a vida das pessoas, apesar do discurso hipócrita que tenta transmitir essa ideia, LBV e FEB pregam para que se "perdoe" os opressores e que os oprimidos evitem "reclamar da vida" mesmo nos piores momentos. De um lado, se passa pano nos abusos dos opressores, sob o pretexto de que um dia "serão alvo da Justiça de Deus". De outro, se pede para os oprimidos sofrerem calados, para não estragar a "alegria dos mais prósperos".
Com isso, o "ecumenismo" da LBV e o Espiritismo brasileiro consentem, mais do que os neopentecostais na perpetuação das desigualdades sociais. Acusados de hidrófobos, os neopentecostais é que, mesmo nos seus limites de ação e sob a sombra de seus abusos, ainda fazem alguma coisa para auxiliar o próximo, buscando alguma solução para algum oprimido.
E vamos combinar que, nesse conflito religioso, o que está em jogo são as relações de poder, nas quais a Record TV é seu maior espaço de poder e doutrinação, é a atuação "imparcial" da "sociedade civil", cujos braços religiosos estão nas crenças "espíritas" e no catolicismo "mais tradicional". Midiaticamente, essa "sociedade civil" é representada pelos grupos midiáticos que conhecemos, como Globo, Folha e Abril, além de Band e SBT.
Para sentir o drama das religiões "saudáveis" da burguesia, vai um oprimido pedir emprego a um "espírita". Ele lhe nega concedê-lo pedindo para aguentar o sofrimento e "manter a fé em Deus". Ou, às vezes, aconselhar uma empresa corrupta para buscar trabalho, desde que o empresário em questão seja amigo dos "espíritas". Mas na maioria dos casos, nem isso acontece.
Já no caso dos neopentecostais, um oprimido recorre a um pastor para obter um emprego e consegue, pois o pastor recomenda um contato para o oprimido procurar e conquistar um posto de trabalho, mesmo sob o preço da conversão religiosa.
Depois os "espíritas" ficam dizendo que são progressistas, se recusando a dar alguma ajuda ao próximo.
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