Numa entrevista dada ao UOL, o filósofo e professor da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle, embora filiado ao PSOL e suplente de um deputado federal pelo partido, reafirmou sua posição crítica quanto ao comportamento das esquerdas brasileiras.
Safatle, que havia dito meses atrás que a esquerda morreu, reafirmou essa ideia reforçando com argumentos de que as esquerdas não falam mais para as periferias e que o governo Lula não trouxe uma pauta que transformasse as estruturas da sociedade. Mostramos aqui os trechos dos comentários de Safatle dados na entrevista:
"Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema-direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema-direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando".
"A esquerda não chegou à periferia porque não tem o que dizer para a periferia. O que tem para dizer para a população periférica? Vão ser criadas macroestruturas de proteção social, grandes estruturas de educação pública, vamos fazer ensino secundário totalmente gratuito para que as pessoas não sejam obrigadas a pagar, ou um investimento maciço no sistema educacional? Não tem nada disso acontecendo. Nada disso está na pauta do dia".
"A extrema direita diz: 'Agora é cada um por si.' E isso tem um nome, que é empreendedorismo. O problema é que a esquerda integrou o discurso do empreendedorismo e isso é uma lógica suicida. Porque se esse é o jogo, se essa é a gramática, a esquerda não tem nada para oferecer".
"Hoje o nosso papel [da esquerda] é a defesa do Judiciário, defesa dos direitos morais, defesa das instituições, defesa da normalidade democrática, defesa dos contratos. Como é que a gente pode ser antissistema? Isso não tem o menor sentido. Por isso que a esquerda morreu. Essa é a razão pela qual ela morreu".
"Essa eleição foi um alerta vermelho mais forte para o PT. Se as coisas continuarem como estão, a extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza. A extrema-direita tem uma lista de candidatos que têm viabilidade eleitoral. Essa eleição mostrou que o governo federal ainda não tem pautas robustas para apresentar que poderiam mostrar uma mudança estrutural na vida das pessoas".
"As primeiras prefeituras da esquerda brasileira pós-ditadura tinham um modelo de gestão com práticas que eram copiadas. Entre elas, uma tecnologia de poder que desapareceu por completo. Não há um elemento para ser memorizado. Nessa eleição, a esquerda teve um discurso gerencial".
"Quando o Lula volta, não tem mais pauta. Não tem aquelas ideias-diretrizes, como o Bolsa Família, o Ciência Sem Fronteiras. O PT virou um partido populista de esquerda. Ele coordena uma série de equivalências entre demandas contraditórias. O resultado é a esquizofrenia. Há uma paralisia porque uma demanda vai anulando a outra, não se consegue avançar".
"Havia no PT um tipo de estrutura onde o protagonismo deveria ser móvel, mas o Lula era o protagonismo imóvel. O que acontece é que, de certa maneira, o Lula fagocitou todas as outras lideranças para se preservar. Nenhuma outra liderança ganhou autonomia dentro do PT e não teve renovação".
"O PT deve tentar -- ou Lula deve tentar -- o Fernando Haddad. Isso mostra um envelhecimento muito brutal dos partidos de esquerda. Anteriormente, os vínculos orgânicos eram a igreja progressista, as universidades e a estrutura sindical. Essa era a tríade que não funciona mais".
"Um dos grandes erros das universidades foi ignorar a matriz fascista do desenvolvimento da história brasileira. A extrema direita tem uma base, mas não tinha uma organização. Ela cria a sua organização vampirizando estruturas existentes. Não tem nada mais hilário do que a coligação pela qual Lula ganha a eleição pela primeira vez — era uma coligação entre o PT e o PL, o partido do José Alencar".
"É importante mostrar para a sociedade uma revogação da reforma trabalhista, da reforma previdenciária, uma luta pela jornada de trabalho de 35 horas, uma luta para que em toda uma empresa tenha pelo menos 30% de representantes dos trabalhadores nos comitês decisórios. Sinalizar claramente que se quer novas relações no trabalho".
Vladimir Safatle é um dos poucos intelectuais brasileiros com o nível de primeiro mundo. Ao lado do sociólogo Jessé Souza, Safatle é um expressivo pensador no oceano de tubarões que se tornou os meios acadêmicos.
Eu, nos anos 1990, percebi que mesmo alguns professores ditos de esquerda na Faculdade de Comunicação (FaCom) e na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da Universidade Federal da Bahia tinham algum viés autoritário, como se eles tivessem se formado ideologicamente nos círculos burocráticos do soft power das elites intelectuais comandadas por Fernando Henrique Cardoso.
Certa vez Safatle foi criticar o "sertanejo" e recebeu críticas dos "filhotes" do culturalismo neoliberal de FHC, Pedro Alexandre Sanches e Eduardo Nunomura. Sanches era o aluno-modelo de Otávio Frias Filho que fingiu hostilizar o ex-patrão só para ficar bem na foto com as esquerdas que o "filho da Folha" queria dominar.
Safatle, por sua vez, é um dos poucos a expressar um pensamento crítico peculiar, como foi o caso de Jessé Souza, e isso é um ato corajoso quando a maioria do corpo docente prefere uma cosmética intelectual de textos com rigorosa linguagem monográfica que serve apenas de maquiagem para um discurso verborrágico e vazio, com temáticas acríticas que "desproblematizam" as problemáticas do cotidiano, transformando problema em "patrimônio fenomenológico".
As esquerdas morderam a isca e hoje se rendem fácil a um neoliberal que se pareça "democrático". Por isso mesmo o tucanato clássico que fundou o PSDB procura se desvencilhar da imagem formal do partido, enquanto esta sigla partidária se tornou, recentemente, um acampamento da ultradireita dente-de-leite.
Por isso é que os tucanos tradicionais, feito pombos voando sobre o milho, migraram para o lulismo, nesta fase atual do governo Lula. Daí que, na prática, o PT acabou virando Partido dos Tucanos.
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