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A GLAMOURIZAÇÃO DAS FAVELAS E A DEPRECIAÇÃO DO POVO POBRE

DOIS LADOS DE UMA MESMA MOEDA - A GLAMOURIZAÇÃO FOTOGRÁFICA DA ROCINHA E A DEPRECIAÇÃO DE CRIANÇAS CARIOCAS NUM LIVRO DIDÁTICO ALEMÃO.

O Brasil de hoje tornou-se apenas uma arena em que duas variantes de uma mesma burguesia disputam narrativas. Uma, mais raivosa, grosseira, reacionária e escancarada, representada pelo bolsonarismo, e outra, mais alegre, cordial, paternalista e comedida representada pelo lulismo dos tempos atuais. Uns e outros representam, hoje, o que os saquaremas (conservadores) e luzias (liberais) significaram nos tempos do Segundo Império. São os "homens de bem" de um lado e os "democráticos", de outro.

Dito isso, vemos dois casos em que a imagem depreciativa do brasileiro, sobretudo o mais pobre, recebe de narrativas produzidas por esses dois polos elitistas que disputam a supremacia sobre o povo brasileiro. Num caso, vemos a glamourização das habitações degradantes das favelas, que deveriam ser vistas como habitações temporárias, mas são tratadas como "permanentes". Noutro caso, é um livro didático alemão que, por influência de algumas fontes consultadas no Rio de Janeiro, trata os cariocas de forma bastante pejorativa, simbolizando, por associação, ao estereótipo geral do brasileiro lá fora.

A foto da lua cheia na Favela da Rocinha é uma amostra da "paisagem de consumo" que as favelas passaram a ter por uma narrativa que vigora há, pelo menos, 25 anos, e que vêm de uma burguesia festiva, supostamente solidária aos pobres e pretensamente modesta e generosa.

O fotógrafo em questão, Bruno Dulcetti, queria fotografar as imagens da Lua Cheia, Lua Crescente e outros tipos de imagens do famoso satélite natural sobre diversos pontos do Rio de Janeiro. O fotógrafo descreveu, em entrevista ao portal G1, o sonho de fotografar a "imagem deslumbrante" da Lua sobre a paisagem da Rocinha, que ele tratou de forma "especial":

"Já tem uns quatro anos que eu quero fazer essa foto. Eu tenho foto de Lua com Cristo, Lua cheia, Lua fina, meia lua, Lua com bondinho. Então, era uma foto que eu sempre quis fazer da Rocinha".

Segundo Bruno, o "clique perfeito" foi tirado da Rua Bertha Lutz, próxima à Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha, com a Lua "tocando" as casas da favela.

"Quando eu vi, ela estava mais clara, porque quanto mais alta ela fica, mais forte ela fica. Então ela já estava mais forte, ela já estava passando as nuvens, a luz. E aí eu parei o carro bem ali onde tem a Acadêmicos da Rocinha. Parei e fiz ali. Foi quando eu estava quase indo embora que eu consegui essa foto".

Embora de forte carga poética, a fotografia segue a lógica da glamourização das favelas, dentro daquela visão paternalista de uma elite "ilustrada", da qual faz parte o fotógrafo. Uma elite não muito diferente dos jovens descolados da Faria Lima, da burguesia que se acha "pobre" porque vai ao estádio de futebol e faz arremedos de rodas de samba nos condomínios e cuja "consciência social" aceita que o povo pobre viva bem desde que este desempenhe os papéis previamente determinados pela meritocracia.

Para quem não lê este blogue, a tentação de ir para a cama tranquilo por conta da glamourização das favelas e da gourmetização da precarização da cultura popular é muito grande, principalmente por parte da classe média abastada cuja única preocupação com o "bem estar" do povo pobre está nos limites de somente evitar que os miseráveis se revoltem e decidam assaltar a "boa" sociedade.

A favela só é linda para quem a vê de fora, ignorando os dramas de casas precárias, acessos difíceis, moradores com sérios problemas financeiros, idosos, gestantes e deficientes com dificuldades para ir e vir, e a disputa de poder de grupos criminosos, como traficantes, policiais truculentos e milicianos. Portanto, nada a ver com as fantasias poéticas de um fotógrafo integrante de uma burguesia "boazinha".

E aí o que parece mudança de foco não é tão diferente assim. Os noticiários recentes divulgaram, através da denúncia de uma família de brasileiros que mora em Berlim, que um livro didático alemão havia reforçado estereótipos xenófobos contra os brasileiros. A abordagem foi repudiada por comunicado da embaixada brasileira de Berlim e a editora da publicação, intitulada ABC der Tiere, a Mildenberger Verlag, decidiu que irá fazer uma revisão na obra.

Num trecho, a obra descreve o caso de um suposto menino brasileiro, que, apesar de branco e aparentando de classe média, representava estereótipos miseráveis:

"Olá, meu nome é Marco. Eu moro no Rio de Janeiro/brasileiro. Eu não vou à escola. De manhã procuro restos de comida nas latas de lixo. Quero me tornar um jogador de futebol profissional".

Embora seja um estereótipo bastante condenável, ele teria sido influenciado por uma fonte que descreveu supostas informações sobre o Brasil para um pesquisador alemão a serviço da Mildenberger Verlag. E isso é um reflexo de um culturalismo que prevalece no Brasil e que não se limita ao bolsonarismo, mas também a muitos fenômenos "democráticos" e "gente como a gente" que prevalece na sociedade, na mesma classe média abastada que glorifica as degradantes casas nas favelas.

Esse culturalismo é marcado pela ojeriza ao senso crítico, pela restrição da Educação a fins "instrumentais", seja pela mera formação profissional ou, quando muito, pelo "livre" empoderamento identitário, e que consente com atitudes viciosas como jogar comida fora e fumar cigarros. É comum, também, nesse culturalismo, dizer que o futebol é "a única alegria do povo brasileiro", desculpa fajuta para tentar justificar o fanatismo pelo futebol.

Se não fosse esse culturalismo, que em parte se traveste de "luta contra o preconceito" e de "causa progressista libertária", certamente não teriam sido difundidas lá fora, causando uma imagem depreciativa do nosso país, que atingem principalmente os mais pobres, que já não têm a quem recorrer.

Essencialmente, não há uma diferença essencial entre o menino que não quer estudar, retira comida do lixo e quer ser craque de futebol e o fotógrafo que adora ver a Lua "tocando" em favelas. São duas visões que acabam sendo, cada uma à sua maneira, constrangedoras para o povo pobre do nosso país.

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