O protagonismo que uma parcela de brasileiros que estão bem de vida vivenciam, desde que um Lula voltou ao poder entrosado com as classes dominantes, revela uma grande pegadinha para a opinião pública, coisa que poucos conseguem perceber com a necessária lucidez e um pouco de objetividade.
A narrativa oficial é que as classes populares no Brasil integram uma revolução sem precedentes na História da Humanidade e que estão perto de conquistar o mundo, com o nosso país transformado em quinta maior economia do planeta e já integrando o banquete das nações desenvolvidas.
Mas a gente vê, fora dessa bolha nas redes sociais, que a situação não é bem assim. Há muitas pessoas sofrendo, entre favelados, camponeses e sem-teto, e a "boa" sociedade nem está aí. Até porque uma narrativa dos tempos do Segundo Império retoma seu vigor, num novo contexto.
Naquele tempo, "povo" brasileiro eram as pessoas bem de vida, de pele branca, geralmente de origem ibérica, ou seja, portuguesa ou espanhola. Mulheres tinham papel subserviente na sociedade e não tinham direito de votar nem serem eleitas. Negros e índios não eram considerados "povo" e a juventude era apenas considerada uma etapa incipiente na sociedade, promissora mas quase um "rascunho" da trajetória humana.
Hoje muita coisa mudou, é verdade, mas voltou-se a ilusão de que uma elite de abastados é "o povo", desta vez com um elenco mais flexível. Há os ex-pobres remediados financeiramente, os "pobres de novela". Há a comunidade identitária, hoje conhecida como woke, com todo o seu hedonismo festivo. As mulheres têm vez e, dentro dos limites sociais, negros e índios, desde que "adaptados" ao contexto social das elites descoladas.
Sem uma consciência social e política relevante, a burguesia ilustrada que comanda o "Clube de Assinantes VIP do Lulismo" tenta, agora, obter o protagonismo pleno. A fachada de hedonismo, livre iniciativa e livre consumo, a perspectiva de ver o Brasil transformado em um grande parque de diversões do planeta, faz essa classe se achar no auge diante de Lula, que se converteu em uma espécie de mordomo dessa elite bronzeada.
Descendentes de antigos colonizadores, escravocratas e proprietários de terras, a burguesia ilustrada precisa renegar suas raízes, agora se achando "mais povo que o povo". Daí a luta frenética para manter todo o faz-de-conta de um presidente pelego que tenta manter a antiga essência esquerdista e a classe média abastada que finge que não tem essa condição.
Depois que as famílias golpistas de 1964, dez anos depois a derrubada de João Goulart da Presidência da Rpública, decidiram "construir" um padrão de Brasil marcado pela bregalização, pelo obscurantismo religioso e pelo hedonismo e consumismo vorazes de quem está de bem com a vida, seus netos agora podem fingir que são "pobres de esquerda".
Mas aí vemos o quanto as forças sociais que lutaram contra as injustiças nos anos de chumbo foram domesticadas ou desacreditadas. O senso crítico foi posto à margem, o sindicalismo e os movimentos camponeses foram enfraquecidos e as universidades hoje estão tão infantilizadas que mais parecem extensões do antigo ensino médio.
A pouca ênfase de Lula com as políticas sociais, que ele só relembrou agora, que está em campanha informal pela reeleição, não incomoda a burguesia ilustrada e sua multidão de falsos pobres. Para eles, o combate à fome e o fim da escala 6x1 no trabalho podem esperar, o que lhes importa é o presidente fazer seu espetáculo nas viagens ao exterior e nos discursos cheios de gafes.
Mas a burguesia ilustrada se preocupa mesmo é em manter o faz-de-conta, pois não se pode sequer relembrar o que essa classe fez nos verões passados. Hoje todos são "pobres de esquerda", por mais que tenham carros SUV, viajem e estudem no exterior, tenham dinheiro para comprar fartas refeições que, após algumas garfadas, vão para a "boca" do lixo. Não podemos contestar essa elite, porque o risco de cancelamento é altíssimo, com um apetite de assustar até os bolsonaristas.
A situação, aliás, é fruto de uma polarização que faz com que lulistas e bolsonaristas disputem espaços de poder. O bolsonarismo está decadente, se desgastando devido à sua irrelevância, mas a burguesia ilustrada que fez o golpe de 2016, seu último espetáculo reacionário, agora finge que nunca foi elite, e até ensaia uns falsos ataques à Faria Lima e uns fingidos puxões de orelha na classe média, como se esse detentores da opulência socioeconômica nunca fizessem parte desses meios.
A situação é triste. Fora dessa caverna digital do Lulismo 3.0, os pobres da vida real sofrem os mesmos dramas como se o Brasil ainda estivesse sob o governo de Michel Temer ou Jair Bolsonaro. Os preços dos alimentos baixam muito lentamente e de maneira temporária, os juros da dívida pública continuam elevados e o mercado de trabalho ainda é precarizado.
Enquanto isso, a burguesia ilustrada, a elite autoproclamada "a mais legal do planeta", se acha no luxo de se achar o "novo povo brasileiro", em completo desdém àqueles que sempre representaram as lutas populares e que, agora, veem os tataranetos da Casa Grande se dizendo "mais povo que o povo", enquanto a necropolítica continua matando ou deixando de escanteio aqueles que não estão de acordo com o clima festivo desse gigantesco parque de diversões chamado Brasil.
Daí que somos obrigados agora a engolir essa alegria tóxica sem freio e aplaudir uma festa onde todos parecem iguais, mas uns demonstram ser "mais iguais do que os outros".
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