O grande problema do Tropicalismo não é sua competência artística e sua provocatividade, que criaram momentos bastante interessantes, há 50 anos.
Neste sentido, o Tropicalismo, em muitos aspectos, havia atualizado o espírito modernista de 1922 para o contexto da Contracultura, do psicodelismo e do hippismo dos anos 1960-1970.
Outra virtude é a capacidade de se tornar jovial mesmo depois da velhice, e é inegável a surpreendente jovialidade de Caetano Veloso, a caminho de completar 75 anos de idade.
O problema foi sempre o acolhimento da chamada "cultura de massa", que poucos admitem ser um perverso processo de exploração comercial da cultura popular.
O apoio dos tropicalistas à bregalização cultural acabou influindo na degradação da cultura popular, apesar daquela desculpa da "diversidade cultural".
Essa desculpa parecia verossímil, quando a tese da "geleia geral" prometia debater a cultura popular apreciando até mesmo o "lixo cultural".
Mas depois essa apreciação nada tinha de questionamento nem debate, mas de complacência.
Aí veio a "ditabranda do mau gosto", sustentando uma tese, bastante discutível, de que a genialidade artística estava no simples ato de "incomodar as pessoas".
Quanto mais vaia recebia, mais "genial" se tornava. E a intelectualidade "bacana" vestiu essa camisa com muito entusiasmo, travando a linha evolutiva da MPB.
Abriram as porteiras para a bregalização geral que escancarou o comercialismo musical e fez acostumarem mal os ouvidos juvenis.
A MPB pós-tropicalista apostava que teria cadeira cativa apoiando o brega, mas acabou sendo jogada para o escanteio.
Hoje, o jovem brasileiro médio acha a MPB "um saco".
Em parte com razão, porque a MPB passou a viver uma fase de acomodação, quando os artistas passaram a ser manipulados por produtores ávidos por lucro e tomados de fórmulas pré-determinadas.
A MPB, antes vibrante e instigante, se perdia numa overdose de canções românticas, muitas sem diálogo com a realidade dos jovens.
Saindo dos limites estritamente musicais, o Tropicalismo abriu as portas para o sensacionalismo televisivo.
Abriu caminho para a espetacularização da sociedade, empurrando de mulheres-frutas a apresentadores broncos.
Isso reduziu o povo pobre a uma caricatura de "bons selvagens", que se afirmavam sempre pelas piores qualidades.
Talvez por boa-fé, a utopia de acolher a "cultura do mau gosto" para "se somar" ao nosso longo patrimônio cultural parecia ter uma verossimilhança histórica.
Mas, refletindo melhor, o fato de refletir a realidade circunstancial fez a bregalização subtrair e pôr em risco o nosso patrimônio cultural, que reduziu-se a ser apropriado por nostálgicos e especialistas.
O povo pobre perdeu sua herança cultural, lembrando o conto "O amigo dedicado" ("The devoted friend"), de Oscar Wilde.
No conto, sabe-se que o pobre Joãozinho (ou Hans, no original, ou Johnny, num contexto mais moderno) tinha um grande patrimônio, simbolizado no jardim de belas flores.
O moleiro, que era um grande aristocrata, se fazia de admirador do jardineiro, mas usurpava as flores do rapaz, e lhe deu em troca um carrinho de mão velho e em péssimo estado.
No Brasil, os "jardineiros" ofereciam sambas, baiões, catiras, modinhas etc para os aristocratas infiltrados entre as elites intelectualizadas mas nem sempre tão cultos quanto estas.
E, de troca, os "jardineiros" (o povo pobre ou a classe média baixa) recebiam de troca fórmulas mofadas de pop estrangeiro para serem trabalhadas de forma "transbrasileira".
Com isso, os retrocessos culturais ocorreram, as empresas de entretenimento, economicamente corretas mas culturalmente perversas, cresceram e aumentaram o poder.
Aqueles antigos artistas surgidos nas classes populares se tornaram cada vez mais raros.
Em seu lugar, fetiches comportamentais que seguiam fórmulas musicais extremamente comerciais, um duplo pastiche de ritmos regionais brasileiros e de pop estrangeiro.
Em muitos casos, sem um pingo de brasilidade, ainda que postiça.
Vieram jornalistas "justiceiros", mulheres que pensavam que ser mulher-objeto era "feminismo" e o anedotário popular explorando de forma pejorativa pobres, índios, negros, mestiços e pessoas LGBT.
Em nome de uma "verdadeira cultura popular" que nada tem de verdadeira, criou-se condições para imobilizar as classes populares assim que a ditadura militar estava em crise.
E aí criou-se, nas elites pós-tropicalistas, um establishment que se definiu como "caetânico", devido à imagem que Caetano Veloso e, por associação, Gilberto Gil passaram a representar nos anos 1970 e 1980.
Cláudio Júlio Tognoli, jornalista da Folha, antes de seus surtos reacionários, definiu o establishment caetânico como "máfia do dendê".
Esse establishment adotava posturas ora avançadas, ora não, dentro de um tendenciosismo sócio-político-cultural.
Recentemente, o establishment acabou recebendo o protagonismo da ex-atriz Paula Lavigne, ex-esposa de Caetano e que segue amiga e empresária do cantor.
Já se fala até em establishment não caetânico, mas lavigniano, diante das recentes habilidades de apelo marqueteiro da empresária.
Consta-se que ela teria se destacado num lobby para "emepebizar" Zezé di Camargo & Luciano, através da trilha sonora de Os Dois Filhos de Francisco.
Ela lançou o movimento Procure Saber que protestava contra biografias não-oficiais, causando um clima de saia-justa nos círculos intelectuais brasileiros.
Ela também se empenhou em "emepebizar" o cantor Alexandre Pires, que deixou o (medíocre) repertório autoral para soar como crooner de MPB, à maneira de Julio Iglesias em relação aos standards estadunidenses.
Agora ela articula um movimento aparentemente bem intencionado, o #TemerJamais.
É um movimento articulado com a Rede Globo para pedir "Fora Temer", postura admitida pela emissora depois que o presidente Michel Temer deixou de atender aos interesses da emissora.
A proposta parece bem intencionada, reunindo atores arrependidos em ter apoiado Aécio Neves e outros que defendem a volta de Lula ao poder.
Assim, nomes como Marcelo Serrado e Paula Burlamaqui se juntaram a Letícia Sabatella e Leoni para, dando um tempo às diferenças, pedirem a saída de Michel Temer.
Uma música foi feita, "Xô Vampirão", para lançar o manifesto.
Só que aí chamaram a cantora Anitta para participar, num processo em que não se esconde um cheiro de tendenciosismo.
Como no caso de Alexandre Pires, no qual se determinou que ele daria um tempo no trabalho autoral.
Coisa que cheira a adesão contratual, a despolitizada Anitta participando de um ato contra Temer.
É até direito de Anitta ser despolitizada, até por ela representar o pop comercial brasileiro, feito por puro entretenimento.
O problema é "guevarizar" ela e outros nomes. Como naquela entrevista de William Waack, na qual se produziu uma "revolução cubana" num copo d'água.
Waack ironizou Anitta, com uma piadinha sobre a geração musical dela, e ela apenas teve jogo de cintura, devolvendo a ironia ao apresentador, hoje em convalescença após passar mal.
Não foi um duelo entre um nome "popular demais" com os representantes dos barões da mídia.
Se fosse assim, a Jovem Pan não estaria tocando as músicas da Anitta.
Voltando ao #TemerJamais, o problema não está na postura dos atores, músicos e cantores envolvidos.
Em muitos casos, a postura pode ser sincera, embora haja casos tendenciosos também.
O problema é que é um movimento midiático, e que, patrocinado pela Globo, revela um certo tendenciosismo.
Outro problema é que ele ainda não conseguiu adesão popular.
A Globo que, através de Luciano Huck, é capaz de transformar sua gíria "balada" em jargão "universal", não conseguiu tornar o #TemerJamais digestível entre o grande público.
E talvez, neste caso, não consiga, porque a MPB que ancora o movimento perdeu o diálogo com os jovens.
É um preço pago pelos tropicalistas para o apoio ao brega.
O brega cresceu, se multiplicou e atingiu um poder tão imenso que hoje a maior parte da música brasileira de sucesso é do mais puro comercialismo cafona do brega-popularesco.
E isso acostumou mal os ouvidos dos jovens, que ainda reagem com fúria quando se fala que eles deveriam ouvir mais MPB.
O apoio tropicalista ao brega influiu mais na criação do atual contexto político do que a política de coalizão dos governos Lula e Dilma Rousseff.
Isso porque a coalizão entre emepebistas e bregas fez com que estes últimos realizassem seu golpe cultural, cujo caso mais recente foi a apropriação brega das verbas da Lei Rouanet e das atrações das viradas culturais.
O brega que abordava de forma caricatural o povo pobre virou um império do entretenimento, e contribuiu para o enfraquecimento da cultura popular e da resignação do povo pobre com a crise política dos últimos tempos.
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