A estranha gíria "balada", que não tem pé nem cabeça e não aceita ter a vida efêmera e grupal de uma gíria, tem tudo a ver com 1984 de George Orwell.
A gíria, que define tão vagamente a vida noturna - pode ser uma apresentação de um DJ como um jantar entre amigos - , é o símbolo da novilíngua midiática.
As pessoas não percebem, porque, aparentemente, qualquer pessoa fala e se o amigo tal e a amiga qual falam, a gíria é "espontânea" e surgiu como o ar que respiramos.
Infelizmente, poucos percebem que é na cultura que existem as maiores armadilhas da corporação midiática.
Talvez por acidente ou boa-fé, até setores das esquerdas às vezes acabam falando o "sotaque da Globo".
Pois "balada" é o exemplo da novilíngua de 1984, uma mudança arbitrária de vocábulos e significantes visando empobrecer a linguagem.
Com um vocabulário mais precário e simplório, as pessoas teriam uma linguagem mais superficial, e com os vocábulos decididos "de cima", estimula-se menos o raciocínio e a percepção crítica das ideias.
A novilíngua do livro de George Orwell reduzia a diversidade de palavras e ideias, assim como sinônimos e antônimos, pois o empobrecimento linguístico é uma depreciação sócio-cultural e um meio de dominar as massas com a linguagem definida "do alto".
A gíria "balada", assim como a banalização da gíria "galera", são exemplos.
A gíria "galera" foi uma descontextualização do sentido original, ligado à tripulação de um navio.
Pela analogia de formato do estádio de futebol com navio, a gíria "galera" passou a ser usada no jargão esportivo para denominar torcidas de futebol.
A gíria também caiu no vocabulário hippie e surfista, nos anos 1970.
Até aí, nada demais. Mas "galera" passou a ser novilíngua nos anos 1990, quando foi usada pela Rede Globo, através do apresentador Fausto Silva, como jargão de projeção totalitária.
Era uma "palavra de poder", só para citar um termo do jornalista inglês Robert Fisk, feita para reduzir significantes.
"Galera" passava a "substituir" palavras como "família", "equipe", "turma", "patota", "colegas de trabalho", mostrando seu caráter reducionista da linguagem.
E revelava o poder de influência da Globo até em quem diz odiar a emissora, o que é ótimo para o domínio da família Marinho em parte de seus detratores.
Vi, num ônibus, um rapaz, de seus 30 anos presumidos, falando mal da Globo e do Domingão do Faustão mas falando "galera" o tempo todo.
De que adianta falar mal da Globo se assimila seus valores, seus ídolos, suas gírias?
Mas a gíria "balada" se torna ainda mais perversa.
Ela surgiu, na verdade, de um jargão privativo das boates frequentadas por gente rica na cidade de São Paulo, no começo dos anos 90.
Sua origem remete ao apelido que se dava a pílulas alucinógenas, "bala". "Balada" seria uma espécie de "festa" em que jovens riquinhos consumiam este tipo de "baseado".
A ideia de transformar a gíria num jargão totalitário, que se impunha acima dos tempos e dos grupos sociais, veio da Jovem Pan, conhecida pelo seu perfil extremamente reacionário.
Seu propagador era apresentador do programa Torpedo da Pan, Luciano Huck, que fazia cobertura das festas dos riquinhos paulistanos no programa Circulando, do canal CNT.
A Jovem Pan também lançou um programa de músicas dançantes e remixagens, que denominou "Na Balada".
Pouco depois, Luciano Huck, que estava na TV Bandeirantes com seu programa H, foi contratado pela Rede Globo para apresentar o Caldeirão do Huck.
Com isso, Jovem Pan e Globo resolveram fazer um teste de como a mídia venal poderia influenciar o público jovem e dominá-lo.
Usaram a gíria "balada", que já era veiculada rompendo com a vida natural de uma gíria.
Sabe-se que uma verdadeira gíria é restrita a um grupo social específico e sua vida é curta, associada às circunstâncias ocasionais da vida desse grupo.
A gíria "balada", apesar de seu claro sentido coloquial, queria ser uma espécie de "gíria do Terceiro Reich".
Queria derrubar os limites naturais de grupo e temporalidade, exercendo um poder totalitário que carrega, em seu bojo, uma ideologia de lazer frenético, viciado, obsessivo, irreal e fascista.
A palavra, fora do colóquio privativo dos jovens riquinhos paulistas, não tem pé nem cabeça. E isso é de propósito, dentro do processo da "novilíngua para jovens" do consórcio Globo / Jovem Pan.
A associação do sentido original ("bala" como eufemismo para pílula alucinógena) com a sociedade como um todo lembra os apelos maliciosos das campanhas da grife de roupas Reserva, que teve Huck como sócio e propagandista.
A ideia de tornar a gíria "balada" um vocábulo "universal" e dicionarizado era um meio de expressar o poder das elites de São Paulo sobre o resto do Brasil.
O ranço reacionário é tal que, nos tempos do Orkut, eu fiz uma crítica à gíria dizendo que ela não era coisa de gente inteligente.
Fui atingido por uma série de ataques dos chamados "fascistas mirins", os internautas reacionários tomados de ódio que agitam a rede digital.
Eles eram membros da comunidade "Eu Odeio Acordar Cedo", a mais popular do Orkut, e anteciparam, em dez anos, os "coxinhas" e "bolsominions" de hoje.
O sentido novilíngua era claro: "balada" queria riscar da linguagem brasileira palavras como "festas", "noitadas", "jantares", "agitos" com uma palavra que se pronuncia quase como se estivesse cuspindo.
Juntando com a gíria "galera", fala-se até usando cacófato: "Tô na balada c'a galera".
A gíria "balada" é um dos símbolos máximos da nação "coxinha", sociopata, cyberbully e vende um ideal de vida nada saudável, mas que uma parcela rica e influente de jovens impõe como "perfeito" e "indiscutível".
É um ideal de lazer obsessivo, voltado às boates, às drogas, ao sexo compulsivo, às baixarias, em que a arrogância se torna um sentimento de triunfalismo e orgulho para a juventude fascista.
É uma espécie de "hedonismo fascista", no qual um único estilo de vida, marcado pela curtição mais mórbida e doentia, era imposto como "modelo de vida" para todo jovem.
Quem não se inserisse nesse contexto, era humilhado nas redes sociais.
Pode parecer um exagero definir "balada" como uma gíria midiática, porque muitos que falam a gíria por acidente alegam que até a vovó fala esse jargão.
Mas o fato de "todo mundo falar" não significa que a gíria surgiu espontaneamente e ninguém foi manipulado.
Afinal, também "todo mundo" foi pedir "Fora Dilma" e se admite a pressão da Rede Globo para tanto.
A cultura é usada pela mídia venal como uma armadilha bastante sutil de manipulação das mentes das pessoas.
E nada como recorrer a George Orwell para entendermos a novilíngua brasileira.
Se as pessoas falam "galera" em vez de família, equipe e turma, e falam "balada" para definir tanto uma rave quanto um jantar de confraternização, é porque a grande mídia aplica muito bem a traiçoeira novilíngua de 1984.
Comentários
Postar um comentário