Foi um choque eu entrar num mercado de alimentos e ver, na televisão, que Fernanda Young faleceu.
Tão nova, um ano a mais do que eu, ela era uma das mentes mais criativas e modernas da cena cultural brasileira.
Eu não cheguei a ver o seriado Os Normais, a não ser alguns trechos da série e o primeiro longa-metragem, mas vi outras criações dela e de seu marido, meu xará Alexandre Machado, como Separação?, Os Aspones, Como Aproveitar o Fim do Mundo e O Dentista Mascarado.
Alexandre Machado nasceu dez anos antes dela, mas ele destoava completamente daquele tipo "o mais velho que ser mais velho ainda" e, de tão jovial, nem parecia estar próximo dos 60 anos.
É duro para ele viver sem sua companheira, e não era só pela alta cumplicidade que os dois tinham para criar diálogos e situações bastante hilárias.
Num ano em que um sem-número de personalidades de grande talento faleceu, 2019 parece um grande pesadelo.
Espera-se que 2020 não se torne um novo pesadelo, que possa virar o jogo. Estamos ameaçados até de perder a Amazônia e o gelo dos pólos está, realmente, se derretendo.
Por ironia, a atriz e também escritora Fernanda Torres, amiga da finada xará e que foi protagonista de Os Normais, escreveu um artigo intitulado "Na cabecinha: Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar".
Se Fernanda Torres tivesse esperado uns dias, a morte de Fernanda Young estaria na pauta. O artigo de Torres tomava como assunto principal a comemoração do governador fluminense Wilson Witzel depois que um sequestrador de um ônibus foi morto.
Mas o que chama a atenção é o que a própria Fernanda Young escreveu no seu derradeiro artigo para O Globo.
Ela criticou a cafonice e o mau gosto reinantes no Brasil.
Não vou reproduzir o texto, ele está no linque, por questões de copyright, afinal o artigo está na edição de hoje de O Globo, vendida nas bancas.
Mas ele é um puxão de orelha num Brasil afundado na mediocridade.
Fala-se que o Brasil está mal resolvido em seus entulhos mentais, anda aceitando demais o erro humano, tratando a ignorância como virtude, desprezando a ciência e usando a religião como hipocrisia, além de usar a brutalidade para impor respeito.
Aliás, como ex-espírita, eu fico horrorizado com a aceitação que se tem à literatura fake que se diz "mediúnica" e que ofende frontalmente a memória dos mortos.
Sem que se realizem estudos sérios sobre paranormalidade, publica-se, desde 1932, obras farsantes que só servem como mera propaganda religiosa das mais canalhas.
São obras que, no entanto, são blindadas, sobretudo quando elas partiram de um "médium de peruca" que se tornou "símbolo da paz e fraternidade" através de uma campanha hipócrita lançada pela ditadura militar.
É assustadora a forma como o "médium de peruca" se ascendeu. De um farsante literário - através de um trabalho sujo que ele não fez sozinho, mas contou com muitos colaboradores na sua instituição religiosa - , ele chegou próximo a um semi-deus pelo seu público de fanáticos.
Era tão blindado que, mesmo sendo um reacionário convicto, que defendeu a ditadura militar e o AI-5 num programa de TV de grande audiência, o "médium" andou cortejado pelas esquerdas, dentro daquele amor não correspondido dos losers com as cheerleaders que os desprezam e odeiam.
Hoje houve um recuo e o tal "médium", falecido há 17 anos, passou a ser visto como "imperfeito, que errou muito mas era bom". Mas a adoração a esse hipócrita continua.
É essa hipocrisia, aliás, que permite a confusão de sentimentos que corrompe as redes sociais e provoca a disparidade mental de pessoas ignorantes que se acham "inteligentes" por nada.
Já surge a tendência de cobrarmos dos brasileiros em geral uma grande faxina interior.
Será que os brasileiros querem ser vanguardistas, esquerdistas, progressistas, modernistas para agradar os outros?
Num país em que o "maior vanguardista" é um cantor brega chamado Odair José, sempre tardio nos modismos do rock e do pop, a fazer hoje o que gente muito melhor fez há 15, 20 anos, é necessário uma autocrítica bastante severa.
Há muita dissimulação, falsidade, pretensiosismo, medo, entre os brasileiros considerados "normais", só para fazer um trocadilho com o nome do maior sucesso de Fernanda Young como dramaturga.
No país dos Aspones, os brasileiros chamam de "banda" conjuntos musicais que nada fazem senão cantar e dançar, sem que houvesse instrumentistas entre seus integrantes.
Os brasileiros consideram Menudo uma "banda" e são governados por um presidente, Jair Bolsonaro, cuja carreira parlamentar foi bastante improdutiva.
Os brasileiros são piegas, criando a ditadura da Emoção sobre a Razão, e a religião considerada a "mais honesta" do país, o Espiritismo, é, na verdade, uma traição vergonhosa a Allan Kardec, na medida em que o "nosso Espiritismo" virou um Catolicismo medieval com botox.
Os brasileiros lutam contra os fatos, querem uma "cultura popular" bregalizada e domesticada, com o povo pobre reduzido a uma caricatura de si mesmo.
Os brasileiros aceitam que a "melhor rádio rock do país" tenha o nome banal de Rádio Cidade e tenha um histórico cuja origem não remete ao rock, mas à disco music. E com uma programação canastrona pilotada por locutores pop sem envolvimento com o rock.
Desde mais ou menos 1964, quando se pediu a ditadura militar "para salvar a democracia", os brasileiros perderam o contato com a realidade.
Se perderam na floresta das conveniências, da overdose de informações, do pretensiosismo e da dissimulação, estes dois filhos da falsidade, mas um tanto mais espertos que sua "mãe".
Hoje temos pessoas mais preocupadas em ser aquilo que não são, para dar uma imagem bastante agradável.
Temos também pessoas que tentam provar a inteligência que não têm, adotando uma maquiagem "intelectual" para argumentações cheias de asneiras.
Até no que se diz à tatuagem, Fernanda Young foi autêntica, dentro daquele 1% de tatuados que tinham razões para "rabiscar" seus corpos.
Muito diferente do "porque sim" corporal, o inconvincente "meu corpo, minhas regras" de muitos aventureiros da rasura corporal, na qual põem nos corpos o que são incapazes de dizer por suas próprias mentes.
Como muita ex-BBB solteira que fica se achando botando tatuagens grosseiras nas coxas, cinturas e costas, mas não conseguem ir além do nível raso de subcelebridades.
O artigo final de Fernanda Young é um desabafo, mas pode ser um documento para 2020.
A próxima década começará sem tantas personalidades admiráveis, mas vamos ver se não seja como o carnaval de retrocessos de 1990, a farra popularesca de 2000 e o reacionarismo festivo de 2010.
Vamos ver se as melhorias realmente decolem na década que virá.
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