Lendo os livros de Jessé Souza, a partir de A Tolice da Inteligência Brasileira, temos subsídios para entender até mesmo o problema do "popular demais" de hoje.
O aspecto perverso do "culturalismo" e da ilusão de "cordialidade" e "conciliação de classes", herdada de mitos trazidos, via Ciências Sociais, por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, permite vermos o problema de forma realmente não-preconceituosa.
Afinal, preconceito não é necessariamente aceitar tudo. Tínhamos, durante muito tempo, uma visão muito preconceituosa do que seria "ruptura do preconceito".
O "popular demais" passou a ser aceito pela classe média e pelas elites, e entrou de vez nas rodas universitárias.
Falou-se muito de suas "vantagens", da utopia de reunir apelo comercial com hiperconectividade, provocatividade e grande alcance público.
Sem falar que o "mau gosto" virou uma causa falsamente libertária.
Só que isso não resolveu o problema e agora há gente que fala na "gaduzização dos MC's".
Explica-se: "gaduzização" se relaciona à Maria Gadu, um dos mais novos símbolos da controversa MPB caetânica.
A intelectualidade "bacana" acaba tendo certos problemas quando a "cultura de massa" vira mainstream demais.
Nos anos 1990, essa intelligentzia tida como "a mais legal do Brasil" apostava na tese de que Roberto Carlos foi o grande modernizador da MPB, mais que Tom Jobim ou João Gilberto.
Diante disso, a intelectualidade "bacana" abriu as portas dos fundos para enfiar clones de RC ou retardatários da Jovem Guarda, além dos ídolos cafonas em geral.
Com isso, o que acadêmicos estrelas que apareciam em programas de TV definiam como "modernização da MPB" acabou sendo a negação da MPB autêntica.
Cinicamente definiam o comercialismo musical que defendiam como "verdadeira MPB", como se a MPB fosse um esporte olímpico de lotar plateias, vender discos e dar audiência para TVs e rádios.
Quem alcançava esse recorde olímpico era "verdadeira MPB", "MPB com P maiúsculo".
Mesmo que soasse musicalmente confuso, sem decidir se fazia country ou boleros, com o andamento da letra "brigando" com a melodia, devido aos arranjos malfeitos.
Soluções cosméticas que tentaram "emepebizar" os neo-bregas da Era Collor, como os ídolos "sertanejos" e "pagodeiros" dos anos 1990 não se resolveram.
Da mesma forma que "guevarizar" o "funk carioca" só fez fragilizar as esquerdas deslumbradas com esse "presente de grego" da mídia patronal.
Com tanta pregação em prol do brega-popularesco, dentro e fora do âmbito musical, os jovens se acostumaram muito mal.
A cultura autêntica, que priorizava a expressão do espírito, deu lugar a uma "cultura do corpo" com atitudes e posturas falsamente "autênticas" ou "confessionais".
O capitalismo privatizou a cultura popular, algo que as forças progressistas têm muita dificuldade em enxergar.
Há gente das esquerdas falando, se não o neolibelês, o globelês, o dialeto da Rede Globo, com as gírias "balada", "galera" ou "cliente", esta no sentido de "freguesia".
Em boa parte por boa-fé, as esquerdas e as forças progressistas em geral não conseguem ver os verdadeiros problemas que atingem a cultura popular e a cultura jovem.
Morderam a isca do "sucesso do momento" ou das "musas empoderadas", em que qualquer siliconada é tida como feminista só porque, aparentemente, não tem sequer um namorado.
Pessoas que sabem discernir o que a mídia hegemônica e a mídia alternativa fazem se recusam a fazer o mesmo diante do que ídolos de proveta e artistas autênticos fazem.
Levam gato por lebre: o ídolo de proveta vira "grande artista" porque lota plateias e "lacrou geral" por causa daquela declaração dele sobre este (a) ou aquele (a) fã.
Com o culto ao "popular demais", esbarraram até mesmo na reacionária mídia policialesca, confundida com Última Hora e O Pasquim, periódicos de esquerda.
Culturalmente, um pensamento hegemônico transformou em "deuses" para as esquerdas gente formada ideologicamente pela mídia patronal, como Paulo César de Araújo e Pedro Alexandre Sanches.
Esse pensamento refletia que, no âmbito cultural, havia uma certa ditadura da esquerda fashion, dos "marxistas de Washington", dos pupilos de George Soros, dos "tropicalistas da Bovespa".
Daí o "culturalismo" que acreditava na conciliação entre mercado e folclore, entre a realidade vivida pelo povo e a construção de realidade que a mídia hegemônica impunha para transformar essa realidade popular em caricatura.
Defendeu-se o consumismo acima da cidadania, como se isso pudesse melhorar a vida das classes populares.
E empurrou a classe média, e, por conseguinte, a classe alta, para apoiar tudo isso.
Resultado: em nome da "ruptura do preconceito", agravaram-se os preconceitos.
Esquecemos que o "popular demais" já tratava o povo pobre como caricatura, de maneira preconceituosa.
Esquecemos que os ídolos da música brega e derivados é que eram muito preconceituosos com a cultura popular e com a arte em geral.
E ver que as esquerdas endossaram o "popular demais" que aparecia na Rede Globo e era aceito por estrelas como Luciano Huck, Alexandre Frota e pelos sociopatas das redes sociais, é assustador.
Tanto empurraram o brega-popularesco que ele virou totalitário.
A MPB agoniza, com poucos novos talentos, precisando de sangue novo e não de ídolos carneirinhos ou provocativos demais.
A ideia não é fulano fazer um dueto com Claudia Leitte e depois gravar com Elba Ramalho ou colocar a causa LGBT acima do talento musical.
A ideia é renovar a linguagem musical, com sinceridade, sem canastrices.
Difícil é explicar isso na era dos algoritmos, das fake news, das pessoas fake, dos inúmeros mascaramentos.
Como por exemplo explicar para o internauta médio que o canastrão Luan Santana não é um "gênio da MPB" ou que o "funk" não vai trazer o socialismo bolivariano para o Brasil?
Para quem sabe das coisas, dá para explicar. Mas quem quer explicar não tem a visibilidade plena dos intelectuais "bacanas".
Quem está no poder, salvo exceções honrosas, não tem competência. E é isso que está fazendo afundar nosso país, com intelectuais "bacanas", governantes temerosos e empresários precarizadores de mão-de-obra.
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