A morte covarde de Marielle Franco, na noite de anteontem, comoveu o mundo e tornou-se o agravamento de uma série de crises e retrocessos, acumulados nos últimos anos.
Ela foi executada quando um carro "colou" no veículo da vereadora do PSOL e um pistoleiro disparou nove tiros, matando a quinta vereadora mais votada em 2016 no RJ e seu motorista, Anderson Gomes.
Uma assessora sobreviveu, mas foi internada em estado de choque.
O crime ocorreu na Rua Joaquim Palhares, no Estácio, depois das 22 horas de anteontem, quando a vereadora saía do evento Mulheres Negras Movendo Estruturas, na Lapa.
Consta-se que os executores estavam esperando pela vítima dentro de um carro estacionado no local do evento.
A tragédia, portanto, acumula muitas crises, sintetizando a gravidade do momento de hoje.
É a crise de um contexto político reacionário, do golpe político de 2016, cujos protagonistas agora choram lágrimas de crocodilo com a perda de uma parlamentar que lutava contra os pobres e excluídos.
É a crise de um padrão de vida do Rio de Janeiro, marcado pelo pragmatismo que tolera retrocessos e acredita num impensável progresso social através da "conformação com o básico", como se os "anos dourados" voltassem com a perda de muitas conquistas e benefícios sócio-culturais.
É a crise de um cenário em que temos várias forças disputando o poder e o controle nos subúrbios cariocas: traficantes, milicianos, policiais corruptos e, agora, um Exército rebaixado a "porteiro de favela".
É a crise de uma suposta "cultura popular", claramente patrocinada pela mídia venal mas apoiada por setores de esquerda, que apostava num "ufanismo das favelas" que fazia uma estranha defesa da pobreza, pelo menos nos valores simbólicos.
É até a crise das próprias esquerdas que estavam começando a brigar.
Há poucos dias, Paulo Henrique Amorim, talvez superestimando o fato de ser apresentador da Record TV, foi desqualificar o jornalista organizador do Brasil 247, Leonardo Attuch.
PHA às vezes comete erros, como a sua complacência com o senador Fernando Collor, quando este brincava de ser esquerdista e fazer ataques ensaiados e tendenciosos à revista Veja.
PHA foi surfar na onda do caso Romulus Maia requentando uma denúncia contra Attuch pela Operação Lava Jato, e superestimou o fato do jornalista do Brasil 247 ter trabalhado para o banqueiro Daniel Dantas.
Que diferença isso faz? O próprio PHA trabalhou para Roberto Marinho. Attuch está conduzindo exemplarmente um canal de TV do YouTube, a TV 247, que procurava unir as vozes progressistas diversas e trazer informação de qualidade e com honestidade.
Criticamos esquerdistas por pequenas divergências mas aceitamos ações de infiltrados que se dizem "amigos das esquerdas" e fazem o jogo político dos que atuam contra o esquerdismo.
Vemos, por exemplo, oportunistas da Liga do Funk fingirem repúdio ao poder das Organizações Globo, para depois se aliarem a esse mesmo poder a pretexto da "visibilidade".
A crise também envolve a plutocracia, que finge solidariedade com a ativista morta, e que no mesmo dia teve um episódio em São Paulo.
Uma manifestação de professores na Câmara Municipal paulistana terminou com repressão e alguns feridos, com uma professora tendo o rosto sangrando.
O crime contra Marielle Franco repercutiu tanto no Brasil e no mundo que a situação está tensa até para seus próprios assassinos.
Desconfia-se que eles podem ser milicianos ou policiais corruptos de Acari, mas nas disputas entre estes e aqueles, até os criminosos que mataram Marielle podem morrer executados por rivais.
O clima no Rio de Janeiro está tenso e até aquela ilusão de vida noturna tranquila também foi derrubada.
Eu participei de um encontro na filial carioca do Centro de Estudos Barão de Itararé e cheguei até a ver e falar pessoalmente com Miguel do Rosário, de O Cafezinho.
Mas tive que ir embora, pouco antes das 22 horas, indo da Cinelândia à Av. Erasmo Braga pegar o ônibus de volta para Niterói.
A situação está insegura e não vivemos mais em 1958, quando havia um pouco mais de tranquilidade para voltar para casa tarde da noite.
Assaltos já haviam nessa época, mas eram menos comuns, dava até para curtir a boemia.
Hoje essa ilusão acabou, e o crime contra Marielle também derruba essa utopia de viver "meia noite, noite inteira, três, quatro, cinco da manhã".
Foi preciso essa terrível tragédia ocorrer para o Brasil repensar a acumulação de tantas e tantas e tantas crises e retrocessos, alguns reflexos de antigas cicatrizes da ditadura militar, outros de complacências e pragmatismos dos últimos 25, 40 anos.
A situação anda muito tensa, e, num contexto em que a prisão do ex-presidente Lula está próxima, a coisa ficará ainda mais pesada para nosso país.
2018 começou oficialmente com o sangue derramado da admirável batalhadora Marielle Franco. Fica nossa solidariedade a ela e nosso desejo do fim da impunidade.
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