"Você não é obrigado a gostar, mas tem que gostar", diz o estranho artigo primeiro da "Constituição" das mídias sociais, motivada pela tirania do valentonismo digital (cyberbullying).
É isso que fez o pessoal reagir à indiferença da atriz e cantora paranaense Marjorie Estiano quando a também cantora Cláudia Leitte foi se apresentar no programa Altas Horas de ontem.
Marjorie - que teve um texto dedicado a ela no meu livro O Mundo Não Quer Ler - e Cláudia eram convidadas do mesmo programa apresentado pelo sempre jovial Serginho Groisman.
De repente, quando Cláudia Leitte, que é ídolo da axé-music, se apresentou, Marjorie, que é da área da MPB e do Rock Brasil, simplesmente não dançou.
Isso causou uma revolta nas redes sociais, que condenaram a atitude de Marjorie, por não terem gostado da atitude da atriz e cantora.
Com base nas mensagens veiculadas, ficou uma certa tirania dos internautas de que Marjorie deveria ficar dançando, de preferência com as mãos para cima e sorrindo feito débil-mental, à apresentação de Cláudia.
E olha que Cláudia não é assim tão popular, comparado, por exemplo, à Ivete Sangalo, e ainda assim os internautas das mídias sociais não gostaram de ver o papel realista adotado por Marjorie.
Eles estranham o fato de uma atriz não gostar de certos cantores, mas deveriam fazer o inverso.
Afinal, ninguém imagina que muitos atores e atrizes recebem cachê para aparecer ao lado de ídolos da música "popular demais", que eu defino como música brega-popularesca.
Não é possível que músicas como essas, naturalmente medíocres - o pessoal pode reclamar, porque está acostumado a ouvir esses sons, mas é isso mesmo - , sejam realmente apreciadas de maneira unânime.
Muitos ficam acostumados em ver atores dançando o É O Tchan, indo ao trio elétrico da axé-music, rebolando o "funk" ou pulando o "sertanejo".
Não sabem que os astros da TV não necessariamente gostam desses sons, e não obstante até o detestam.
Mas por trás da suposta tietagem, existem condições contratuais que obrigam a esse papel, que na verdade é o de propagandista dos ídolos popularescos.
Tratam-se de protocolos que devem ser obedecidos, dentro de um roteiro de compromissos profissionais para crescimento na carreira artística dentro do mercado midiático.
Por exemplo, se um ator está ao lado do ídolo da axé-music, no trio elétrico, ele não está como fã.
Está como garoto-propaganda do ídolo musical, e cumpre aquele compromisso profissional porque depende disso para, entre outras coisas, conseguir um papel de destaque numa novela.
Se a moça dança o "funk", o que está em jogo não é a apreciação do gênero (de gosto e valor bastante duvidosos), mas diversas cláusulas comerciais que envolvem desde protagonizar a próxima novela das nove da Rede Globo e estrelar um comercial de marca de cosméticos.
A música "popular demais" é tão postiça e comercial quanto um sabão em pó, e do mesmo modo atores e atrizes fazem o papel de garotos-propagandas dessas verdadeiras mercadorias musicais.
O problema é que os internautas, cheios de falácias e pensamentos desejosos, ficam falando muitas bobagens "poéticas" e "etnográficas" em relação a esse comercialismo musical.
Sobretudo as gerações millenials, que vivem dentro do cativeiro midiático, tecnológico e mercadológico e não sabem a diferença entre o que é comercial e não-comercial.
Diante disso, o discurso da "ruptura do preconceito" - não é preciso dizer que a intelectualidade "bacana" ajudou a fundir a cuca dos mileniais - na verdade produziu muito mais preconceito.
Ele fez o público médio submeter seus gostos musicais aos ditames do poder midiático, que é o que mais interessava nessa falácia de "romper o preconceito".
O preconceito não acabou, ele mudou de foco, indo para a música de qualidade. A música de gosto duvidoso é que usou dessa falácia de "combate ao preconceito" para ampliar mercados e exercer supremacia absoluta.
O resultado é esse, que vemos na reação à atitude de Marjorie Estiano.
E se baseia na tola e absurda tese de que "ninguém é obrigado a gostar, mas é obrigado a gostar".
E os internautas criam o "Tribunal da Internet" para fazer prevalecer valores estabelecidos.
Daí o valentonismo digital comandado por internautas valentões defensores de causas furadas.
Faz-se muito burburinho para defender essas causas, mas elas depois se revelam fajutas e decadentes, o valentão se expõe demais e, no fim, ele vira saco de pancadas ou faz espetáculos com plateia vazia.
São coisas insólitas que ocorrem na Internet desse país amalucado que é o Brasil.
E ficamos aqui apoiando Marjorie Estiano que não precisa fazer o papel fictício e contratual de ficar dançando tolamente uma axé-music. Ela tem luz própria, não precisa cumprir protocolos contratuais.
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