NUM PAÍS QUE ENDEUSA MICHAEL JACKSON E CULTUA O VIRALATISMO DA BREGALIZAÇÃO, O DISCURSO DE "SOBERANIA" SOA COMO UMA PALAVRA MORTA.
A polarização política fez do Sete de Setembro uma batalha ideológica. Aparentemente o placar da presença da multidão ontem, somente na cidade de São Paulo, foi maior no evento bolsonarista, com 42 mil pessoas na Avenida Paulista, do que no evento lulista, com 8,8 mil pessoas, segundo levantamento da Universidade de São Paulo. Outras capitais brasileiras tiveram também suas manifestações, tanto no lado lulista quanto no bolsonarista.
Enquanto o presidente Lula preferiu assistir ao desfile do Dia da Independência em Brasília, conforme determina o protocolo de seu cargo, movimentos sociais são que dominaram as manifestações solidárias ao atual governo. No entanto, as pautas pareciam sem naturalidade nem espontaneidade, seguidas mais pela associação ao comando de Lula do que às naturais reivindicações dos presentes.
Um exemplo disso é a escala 6x1 do trabalho. Se a manifestação fosse realmente mais visceral e decisiva, esse padrão de exploração profissional teria acabado faz tempo. A impressão que se tem é que os manifestantes, independente de serem contra ou a favor da escala 6x1, parecem aquelas crianças do jardim de infância que, numa peça teatral da escola, mostram placas pedindo para "preservar a natureza".
Embora os lulistas se gabem de julgar sua agenda temática mais positiva, os bolsonaristas se saíram mais fortes em quantidade, apesar dos abusos. Na manifestação da Avenida Paulista, houve os choros de Michelle Bolsonaro, esposa de Jair e do pastor neopentecostal Silas Malafaia e os ataques do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao Supremo Tribunal Federal, chamando o ministro Alexandre de Moraes de "tirano" e "ditador". Moraes também foi o alvo de manifestos pelo impeachment em cartazes exibidos por bolsonaristas.
Tarcísio agora é acusado pelo STF de defender "Bolsonaro acima de tudo" e os lulistas apontam vassalagem do governador paulista que se prepara para a corrida presidencial de 2026, como um dos favoritos para enfrentar a "democracia de um homem só" de Lula.
Apesar do triunfalismo dos lulistas, que usam a palavra-chave "soberania" para contrapor à "anistia" reivindicada pelos bolsonaristas, diante da hipótese de prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro, uma análise mais cautelosa aponta para uma perigosa tese: a de que o termo "anistia" tem uma carga emotiva mais eficaz do que o termo "soberania".
Comecemos com o termo "soberania", adotado pelo presidente Lula como reação contra o tarifaço de Donald Trump e como insubmissão do governo brasileiro às imposições políticas dos EUA. É um termo bem intencionado quanto à defesa da independência política brasileira, mas é pouco valorizado na prática, mesmo quando a comunidade woke assimila a retórica do petista.
No entanto, "soberania" tem uma carga menos eficiente e ambígua, por diversas razões:
1) Com um cenário cultural marcado pela música brega-popularesca, que em toda sua linhagem, dos primeiros ídolos cafonas do passado aos nomes do piseiro e do trap, passando pela axé-music, "funk", "pagode romântico", "sertanejo" (inclui até o sucesso "Evidências" com Chitãozinho & Xororó), "forró eletrônico" etc, totalmente integrado às regras e modismos do comercialismo musical estadunidense, o papo de "soberania" brasileira soa vazio e inócuo, para um público capaz de endeusar um ídolo mediano e supervalorizado como Michael Jackson;
2) A palavra "soberania" tem sua semântica associada ao poder e ao domínio, e se o termo inicialmente se refere à autonomia política do nosso país, no entanto reflete também um sentido ambíguo, associado ao autoritarismo, à arrogância e à supremacia. Juntando isso à ideia de "democracia de um homem só" de Lula e do jeitão de "valentões de escola" que os seguidores do petista usam para agredir a concorrência, o termo "soberania" pode inspirar uma conotação mais negativa do que positiva entre os brasileiros.
A exibição provocadora da bandeira dos EUA na manifestação bolsonarista, fotografada por um repórter da Folhapress, Eduardo Knapp, ao lado de uma bandeira do Brasil em tamanho menor, sugerindo a vassalagem do nosso país a Trump, torna-se insignificante como um problema, uma vez que o evento atravessa o período do festival The Town, um acontecimento com nome em inglês e marcado por atrações estadunidenses e destacando a franquia do trap brasileiro, originalmente da terra do Titio Samuca.
Portanto, a "soberania" brasileira soa uma palavra vazia de sentido para quem endeusa o hit-parade dos EUA e sua "cultura pop" a ponto de glorificar nomes que estão longe de serem alguma maravilha, como Guns N'Roses e Michael Jackson. É, portanto, um público que fala portinglês, inserindo no seu português mal falado e muito mal escrito termos como "body", "bike", "dog" e "snack" e resiste em criar um termo brasileiro para substituir "bullying" (eu propus "valentonismo" mas não tenho a visibilidade de um Luciano Huck, fazer o quê?).
Daí que tanto faz, mesmo para os lulistas que também surfam no portinglês, cultuam o country caricato de Chitãozinho & Xororó e exaltam o "funk" de raízes na Flórida anti-castrista, haver ou não uma bandeira dos EUA exibida em tamanho gigante durante o Dia da Independência do Brasil. A "indignação" mais parece um reflexo da narrativa lulista do que para uma natural indignação anti-imperialista. Os lulistas preferiram reagir com sua gigantesca bandeira brasileira na manifestação em São Paulo.
Com o clima de vitimismo dos bolsonaristas, no entanto, a narrativa da "anistia" acaba tendo uma carga semântica mais positiva do que a palavra "soberania". Enquanto "soberania" pode conotar ideias de poder e dominação, "anistia" tende a conotar conceitos de "libertação" e "perdão".
Lembremos, também, que os bolsonaristas se dizem cristãos e podem comparar a agonia política de Jair Bolsonaro com o martírio de Jesus Cristo. Isso é muito perigoso e Jair pode se sair bem do episódio de sua prisão, o que pode fortalecer a oposição a Lula, que nunca sai de sua bolha de seguidores, uns "milhares de pessoas" que nas redes sociais se autoproclamam "a maioria esmagadora do povo brasileiro", mas nunca são mais do que um simples "Clube de Assinantes VIP do Lulismo".
Embora Lula esteja no poder e, aparentemente, esteja dominando as narrativas em torno do seu desempenho e do seu destino político, o feriado de Sete de Setembro parece ter sido favorável aos bolsonaristas, que conseguiram fazer seu teatro de coitadismo para o público. Pode não ser uma guerra ganha, mas a polarização política segue com essa disputa, no momento em que lulistas olham para seus umbigos e bolsonaristas choram lágrimas de crocodilos. E o Brasil cada vez mais fragilizado.
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