O lulismo tornou-se uma tendência muito estranha e, em muitos aspectos, afastada do ideário progressista, mesmo o moderado esquerdismo de cerca de 20 anos atrás. Os apoiadores de Lula passaram a adotar posturas até mais estranhas do que em 2005, quando elas acolheram o culturalismo brega-popularesco do "combate ao preconceito", quando intelectuais empenhados pela degradação da cultura popular agiam, combinando o think tank à maneira do IPES-IBAD com um discurso pseudo-modernista.
Era a época dos "brinquedos culturais", ou seja, a assimilação, por setores das esquerdas, da simbologia culturalista da direita dos tempos do general Ernesto Geisel, época em que a ditadura militar buscava meios não-violentos de dominação, evitando colocar os generais brasileiros sob a mira dos órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos, que poderiam investigá-los por crimes contra a humanidade.
Daí que, com os "brinquedos culturais", as esquerdas médias (ou seja, as esquerdas mainstream) passaram a sonhar com o Brasil à imagem e semelhança das novelas das 21 horas da Rede Globo. Cantores cafonas do passado, funqueiros, "médiuns espíritas", mulheres-objetos e craques de futebol milionários passaram a povoar, de maneira irresponsável, o imaginário das esquerdas por conta de uma simbologia falsamente positiva que, em tese, era associada à alegria e ao bem-estar do povo pobre.
Os "brinquedos culturais" sabotaram o esquerdismo e, em primeiro momento, abriram caminho para o golpe político de 2016, já que a bregalização desmobilizou as classes populares, enganadas pela falácia, trazida pelo "filho da Folha" Pedro Alexandre Sanches, de que a diversão popularesca já era em si "um ativismo político". Junto a isso, movimentos como o Espiritismo brasileiro também tratavam o povo pobre como inferiores, investindo em caridade paliativa que não rompia com a pobreza em seu conjunto.
Com a deterioração cultural defendida, consolidada e fortalecida sob a desculpa de "romper o preconceito" - pura desculpa para empurrar a bregalização para públicos antes tidos como cultos ou seletivos - , que também atuou para ampliar reservas de mercado para os ídolos popularescos, alcançando públicos com maior poder aquisitivo e permitindo, com isso, maiores vendas de produtos, em especial a indústria de cerveja, aliada da bregalização musical, o golpe contra Dilma Rousseff deixou seu legado.
Esse legado não foi totalmente rompido quando Lula voltou à política, pois o petista, na prática, apenas eliminou os aspectos mais explícitos do governo Michel Temer. Mas a precarização do trabalho, a alta dos preços e a alta dos juros foram mantidos, além de jogados sob o tapete diante da espetacularização do próprio presidente Lula na política externa, o palco para seu espetáculo de simples orador e bravateiro, que compensa sua performance de governante medíocre e "pai ausente" dos pobres.
Jair Bolsonaro foi, sem dúvida, um político nefasto e sua atuação como presidente da República foi bastante nociva para os brasileiros. Não há como negar isso e destacar ainda a figura perigosíssima do filho Eduardo, que ainda é mais ameaçador do que o pai e já mostra dons de aspirante a tirano.
No entanto, devemos lembrar que o papel de Jair Bolsonaro no golpismo político de 2016 foi mais como operador do que como mentor. Ele foi apenas um ator de um roteiro alheio. Seu caminho foi aberto porque ele foi um dos deputados federais eleitos pela onda de "moralismo" que veio justamente pela deterioração cultural que manchou a imagem das esquerdas e permitiu o reacionarismo do antipetismo.
Se não fosse as "pregações" de Pedro Alexandre Sanches, que "passeou" pelas redações da imprensa de esquerda para fazê-la "pensar como a Folha Ilustrada", não haveria Rodrigo Constantino. São dois lados da mesma moeda: Sanches, conterrâneo de Sérgio Moro, fazia seu teatrinho fingido de "bom esquerdista" para seduzir a mídia alternativa, enfraquecendo-a, enquanto surgia Constantino fingindo apoiar a "cultura popular de verdade" para desqualificar o esquerdismo "que só apoia porcaria".
E aí veio a construção do antipetismo, a Folha de São Paulo que lançou Sanches como um "cavalo de Troia" para a militância de esquerda tornou-se uma das porta-vozes mais ferozes contra Dilma Rousseff, e, enquanto as classes populares eram desmobilizadas ou, quando muito, apelavam para o falso ativismo do "funk" (que, na prática, fazia o mesmo papel no petismo de 2002-2016 que Cabo Anselmo fez na crise do governo João Goulart em 1964), a direita reacionária começava a construir o imaginário antipetista.
E aí vieram acusações simplórias, exageradas e até ficcionais contra Lula. O líder petista sempre foi criticável, mas já foi uma figura admirável como político e gestor, diferente do "admirável" presidente do terceiro mandato que passa pano na direita moderada e prefere fazer política no exterior enquanto mantém alimentos caros e salários e profissões precarizadas.
Daí que o lulismo e o antipetismo, ao desenvolverem as estruturas da polarização política - consequência crucial das jornadas de junho de 2013 - , criaram narrativas antagônicas que passaram a ser dominantes, dificultando a repercussão de narrativas mais realistas e lógicas, que só conseguem ter espaço em ambientes "marginais" da opinião pública.
Isso garante uma situação surreal: a de que o lulismo não aceita críticas ao presidente Lula e suas atitudes recentes, a não ser que sejam os mesmos "absurdos" lançados pelo discurso grotesco dos bolsonaristas. É como no fanatismo pelo futebol, que aceita que, no caso carioca, você possa ser flamenguista, vascaíno, tricolor ou botafoguense, só não pode repudiar ou estar alheio ao futebol.
Não pode haver uma crítica realista ao governo Lula, no seu atual mandato. Se o governo financia deputados federais com as tais "verbas para emendas parlamentares" - eufemismo "técnico" para compra de votos - , não há mais como apelar para as críticas ao enriquecimento abusivo do Legislativo. Se Lula decretou aumento pequeno do salário mínimo, temos que acreditar que foi um "aumento real".
Se duvidarmos disso e acharmos que a ênfase de Lula na política externa - que fez o presidente, assim que foi eleito, viajar ao exterior em vez de cuidar dos brasileiros - é um grave erro, entamos somos boicotados pelos negacionistas factuais e jogados no pátio do bolsonarismo, por mais que, por outro lado, também rejeitamos Jair Bolsonaro e achamos seu discurso antipetista bastante primário.
Afinal, não se trata de conceber uma imagem de Lula como um "mafioso", um "ladrão de banco" ou um "batedor de carteira". As críticas realistas a Lula enfatizam o lado do mau gestor, de um presidente que, em seu atual mandato, busca mais a consagração pessoal, e cuja performance não está tão progressista quanto antes, daí a queda de popularidade que escapa do radar dos relatorismos de institutos como QUAEST, IPEC e IPESPE, porta-vozes da tecnocracia acadêmica que é parte da burguesia que se ascendeu nos tempos de Ernesto Geisel e se ascendeu na Era FHC.
Essas críticas realistas, cujas amostras em posições que vão desde a desilusão do compositor Paulo Coelho, decepcionado com o atual mandato de Lula, até os relatos de Vladimir Safatle - um dos poucos intelectuais de esquerda sérios, certa vez desqualificado pelo "filho da Folha" Pedro Sanches - , atuam apenas fora do perímetro da opinião pública dominante, a opinião que se torna "pública", ainda que mais próximas de interesses de grupos privados do que das classes realmente populares, aquelas que não têm tempo nem acesso sequer de se manifestarem plenamente nas redes sociais.
Por isso, é irônico afirmar que o lulismo só "leva a sério" a críticas que vêm do bolsonarismo. Sim, porque é fácil para os lulistas combaterem e contra-argumentarem, daí essa legitimação. E, na narrativa lulista atual, o ultraconservadorismo, o neoliberalismo e outros símbolos da direita hoje estão associados ao bolsonarismo, enquanto o imaginário lulista torna "invisíveis" o golpe militar de 1964 e o golpe político de 2016.
Quanto ao golpe militar de 1964, a narrativa até mudou um pouco, por conta da repercussão do filme Eu Ainda Estou Aqui, de Walter Salles Jr.. Mas o imaginário lulista apelou para uma ótica bastante maluca, a de atribuir a ditadura militar de 1964-1985, incluindo o golpe de Primeiro de Abril - que os lulistas agora "creditam" à data oficial de 31 de Março - e o AI-5, como "filhos" da revolta de Oito de Janeiro ocorrida em 2023.
Essa visão maluca se observa quando imagens de arquivo sobre a ditadura militar eram colocadas em montagens fundindo com a imagem de Jair Bolsonaro, como naqueles efeitos de imagens em transição, com duas fotos sobrepostas.
Ou seja, toda essa narrativa do antipetismo é legitimada como a "única visão oposta ao lulismo que se considera aceitável", com o objetivo de criar apenas um repertório da polarização, não permitindo que visões alternativas e realistas sejam levadas ao conhecimento do grande público. Daí a campanha de boicote dos negacionistas factuais a serviço do Clube de Assinantes VIP do Lulismo 3.0, sempre zelando pelo "jornalismo Cinderela" que atualmente blinda o presidente Lula.
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