Um grande erro dos intelectuais progressistas foi aceitar a utopia do "popular demais" produzida pela mídia empresarial.
Quem tem menos de 60 anos de idade acabou caindo na falácia de que a breguice dominante comandaria a revolução social do Brasil.
Se esqueceu de que nem toda abordagem "alegre" do povo pobre é positiva.
Há muito de caricatura, de estereótipo e de um perverso processo de idiotização cultural.
Durante anos as esquerdas engoliram o mito da "pobreza feliz" achando que isso era sinônimo de triunfo das classes populares.
Era o contrário: era a aparente resignação de uma parcela de pobres sem instrução que passaram a servir ao espetáculo hipermidiático.
Era a sociedade do espetáculo sob o rótulo de "cultura das periferias".
Um discurso que parecia prevalecer de maneira monolítica, sem qualquer contraponto.
Intelectuais "bacanas" que monopolizavam o circo da visibilidade, aplaudidos por plateias lotadas até quando espirravam, tinham despistado seus próprios contrapontos.
Barrados nos cursos de pós-graduação, outros intelectuais, mais próximos das visões de Umberto Eco, Jean Baudrillard e outros, tinham acesso dificultado pelo banquete da visibilidade.
O debate era para ser unilateral, com a intelligentzia falando de breguice como se fosse a "revolução cubana em marcha" nos subúrbios brasileiros.
O contraponto que ficasse falando para meia-dúzia de pessoas em páginas pouco populares na Internet.
Dessa forma, os intelectuais tidos como "muito legais" num país de profundo anti-intelectualismo, quiseram sufocar os debates sobre cultura popular.
"Frilas" da mídia venal, o desvínculo com a mídia hegemônica os fez com passe livre até para serem contratados pela mídia esquerdista e lutar na trincheira rival.
Era uma forma de garantir que, mesmo com regulação da mídia, as abordagens culturais da mídia hegemônica prevalecessem mesmo no âmbito das esquerdas.
Muitos caíram na armadilha, na boa-fé, e agora se tem a ressaca de uma bregalização que imobilizou o povo e deixou Dilma Rousseff ser expulsa do poder, afastando a resistência das classes populares, divertidas com a "livre expressão do mau gosto".
Ficou o rastro de uma farsa que as esquerdas preferem não debater, temendo réplicas da direita histriônica.
Mas a verdade é que o mito do "popular demais" mostrou sua raiz ultraconservadora, que foi abafada pelo discurso dos intelectuais "bacanas".
Ela veio de uma construção, de uma concepção de "classes populares" desenvolvida pelo coronelismo midiático regional em parceria com as oligarquias midiáticas de São Paulo.
Essas relações têm paralelo com as relações econômicas que o latifúndio tem com as indústrias e os centros de distribuição localizados no Estado de São Paulo.
Através do ideal do "brega", o coronelismo midiático desmontava a cultura popular, de forma a transformar o povo pobre numa multidão confusa de resignados com a miséria e envergonhados de si mesmos.
Um público que digeria uma mistura intragável de provincianismo rural e suburbano e a colonização cultural imposta "de cima", pelas emissoras de rádio e TV.
O povo pobre virou refém de seus próprios defeitos, enquanto passava a ter baixa auto-estima e sentir vergonha do legado cultural de suas comunidades.
Em contrapartida, era convidado pelas programações de rádio e TV "populares", mas controlados por oligarquias, a desejar o "luxo" da "cultura estrangeira", dos valores elitistas, "remodelados" pela estética brega.
A lógica Roberto Campos aparecia: "cultura popular" desenvolvida de maneira dependente ao estrangeiro e com material obsoleto vindo de fora.
Velhos boleros vendidos como "novidade" em 1964, quando os EUA sentiam os primeiros sinais de psicodelia.
O povo pobre servindo de "depósito de lixo" para os "bens culturais" que as elites não queriam mais.
Entre 1964 e 1979, a grande mídia desenvolveu uma concepção (sim, um conceito!) de povo pobre, bem mais caricatural que o das chanchadas do cinema dos anos 1940 e 1950.
Por incrível que pareça, a Rede Globo esteve de fora do processo. Mas, a partir de 1985, aderiu com muito gosto ao desmonte da cultura popular brasileira.
Um precedente ocorreu em 1964, quando Assis Chateaubriand, o "velho capitão" que comandou a "Rede da Democracia" que veiculava textos do IPES-IBAD contra João Goulart, botou um programa popularesco num canal que deveria ser educativo.
Pois a TV Cultura, na sua pouco falada fase nos Diários Associados, entre 1960 e 1969, havia lançado, em 1964, o programa O Homem do Sapato Branco, com Jacinto Figueira Jr..
Um programa sensacionalista, sem qualquer relação com as finalidades educativas. Talvez até caísse bem na TV Cultura de hoje, aparelhada pelo PSDB.
Conta-se que o "popular demais" teria sido oficialmente inventado pela TV Tupi de São Paulo.
A bregalização, orquestrada pelo coronelismo midiático do interior do país e de São Paulo em geral, se ampliou pela emissora do "condomínio associado", já que Chatô não administrava a Tupi de 1960 a 1968, quando faleceu.
Nos anos 1970, a breguice virou padrão através da TV Tupi, da Rede Record, que deixou para trás seu apreço à MPB, e da TV Bandeirantes.
Animadores como Sílvio Santos, Edson "Bolinha" Cúri, Raul Gil e Barros de Alencar também viraram, na prática, porta-vozes de um "ideal brega de vida" para as classes populares.
A Globo ainda era sofisticada, se comportando como uma resposta não-esquerdista da TV Excelsior.
O grande problema é que, no começo do século XXI, o historiador Paulo César de Araújo, inclinado a manipular a História da música brasileira, tentou inverter as coisas.
Ele tentou creditar o brega como "revolucionário" e a MPB como "servil à ditadura militar".
Araújo, blindado pelas Organizações Globo, vendeu seu discurso para as esquerdas, o que chegou a dar o resultado esperado.
O passado de mídia oligárquica foi posto debaixo do tapete e a breguice passou a estar na pauta das esquerdas, de maneira equivocada.
A falácia de que o "mau gosto popular" era um desafio para o poder das elites reacionárias pegou muita gente desprevenida.
Mas a pegadinha "ativista-etnográfica", feita sob uma retórica "pós-tropicalista", estabeleceu um preço caro.
A breguice dominante nunca foi repudiada pela mídia venal e a Globo cada vez mais abraçou a causa da breguice, que contribuía para anestesiar o povo pobre num entretenimento falsamente vendido como "ativismo sócio-político-cultural".
O "funk", que poucos admitem sempre ter sido blindado pela Globo, foi o carro-chefe desse cardápio estranho, que desmobilizava as classes populares de maneira sutil.
Afinal, desmobilizava as classes populares dando a impressão de que elas "já estavam se mobilizando" com o entretenimento.
Daí a armadilha: em vez do povo pobre discutir seus direitos e garantias, foi jogado ao espetáculo da breguice, como crianças aconselhadas pelos pais a se afastarem da sala para brincar no quarto.
As elites piraram: "melhor um pobre rebolando do que lutando por reforma agrária".
A intelligentzia refinou a falácia com mentiras: "para que lutar por reforma agrária, se o rebolado era a 'reforma agrária'?".
Só que a armação foi longe demais. O povo foi desmobilizado, a classe média de direita se articulou, o PT saiu do poder e a intelectualidade "bacana" que tentava "guevarizar" o brega ficou sem sua graninha da Lei Rouanet.
Sem as verbas do MinC, a intelectualidade "bacana" foi chorar pela gorjeta cancelada.
Não esperavam que o MinC fosse naufragar tanto, achavam que, com o povo anestesiado pelo brega, era possível manter o governo petista mesmo sob a castração cultural das classes populares.
O soneto brega saiu pior do que a emenda e o "funk" pariu o governo Michel Temer.
Se esqueceu, também, que a "cultura" brega encontra afinidades viscerais nas reformas do governo Temer.
O subemprego dos camelôs, que a retórica brega definiu como "criatividade popular", é na verdade um dos aspectos da reforma proposta pelo temeroso presidente.
As solteiras idiotizadas, as prostitutas reféns de seu ofício, os idosos que só têm o álcool como diversão, os pobres, envergonhados com as próprias raízes, sonhando com o luxo de "noviorque", todo esse ideal vendido como "progressista" antecipava os retrocessos do governo Temer.
O próprio Temer tem pinta de cantor cafona à maneira dos bregas de 1960-1964. Quase um misto de Waldick Soriano com Nelson Ned.
A bregalização do Brasil, portanto, castrou demais o povo pobre e fez as forças progressistas perderem o poder.
Agora, o jeito é a intelectualidade que lutou por um Brasil brega, pelo menos, retomar o vínculo com a mídia oligárquica, se não quer ficar sem uma boa remuneração.
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