
A nossa burguesia enrustida, ilustrada e de chinelos e sapatênis, segue a tradição de seus antepassados como uma das classes sociais mais perversas do mundo. Mas, diferente das gerações anteriores, a atual geração consegue se disfarçar de gente simples e esclarecida de forma a fazer convencer de que a burguesia seria uma “espécie em extinção”. Só que não.
A burguesia que derrubou João Goulart em 1964 ainda está aqui, mas como os capangas de piratas, seus membros precisam embarcar e tripular o navio inimigo assim que o navio pirata estiver naufragando. Deixam os antigos chefes da pirataria morrerem em naufrágio, enquanto se passam por rivais dos antigos líderes só para ficar bem na foto.
Hoje alinhados em Lula, a burguesia ilustrada, mesmo com seus "animais consumistas", pode discordar de alguns pormenores do projeto político de Lula, que hoje nem o presidente cumpre com integridade. Mas a burguesia fica feliz ao ver que Lula é mais mão aberta, e parece contraditório que os burgueses heterodoxos do Brasil prefiram Lula a, por exemplo, Tarcísio de Freitas, mas é compreensível. Afinal, a atual geração burguesa é politicamente correta, precisa parecer progressista aos olhos dos brasileiros em geral, e se seus avós não aguentavam um minuto de Jango no poder, os netinhos de hoje não veem a hora de Lula assumir imediatamente o quarto mandato.
Entre as divergências, há a defesa da precarização do trabalho. Lula é pessoalmente contra, mas nada pode fazer para combater aberrações como a escala 6x1 e o trabalho 100% comissionado (cuja remuneração é tão certa quanto uma raspadinha lotérica). A burguesia defende essas aberrações, mas como Lula depende dessa classe que lhe facilitou a travessia para o Planalto, ele prefere falar em vez de agir, apenas manifestando discordância com aquilo que não pode mexer. Como nos preços altos dos alimentos, por exemplo.
A nossa burguesia ilustrada é tão hipócrita que se acha ofendida quando reconhecida como burguesa. Ela precisa fazer crer que a burguesia morreu, que a grande mídia está decadente, que a direita está falida, que o neoliberalismo agoniza e que o império dos EUA está caminhando para o fim. Tudo papo furado, mas a burguesia enrustida apela tanto para esse artifício que precisa recorrer a um instrumento deixado pelos avós para usar mesmo em tempos “democráticos” como os de hoje: a censura.
A diferença é que essa censura não é formal e muito menos institucional, mas informalmente trabalhada pela cultura do cancelamento e pela manipulação dos algoritmos, na tentativa de enfraquecer o pensamento crítico, também bloqueado pelas universidades públicas cujos cursos de pós-graduação são meras cosméticas discursivas de conteúdo e função social vazios e estéreis, salvo exceções, um Umberto Eco ou um Jean Baudrillard dificilmente passariam numa seleção para o Mestrado no Brasil, pois monografia se trabalha com a flanela e não com o cérebro.
A burguesia ilustrada é tão cruel que adora teorizar sobre o sofrimento humano. Em várias ocasiões da vida, essa classe sempre fala, com a doçura do “amigo dedicado” do conto de Oscar Wilde, sobre as “maravilhas” de suportar adversidades sem fim, “filosofando” de que “sempre temos momentos ruins na vida”, como se encarar tais situações fosse bom. A burguesia ilustrada odeia sofrer, mas seu jeito opressor é mascarado por uma retórica “sábia” sobre “como vencer na vida após uma avalanche de adversidades, tragédias e desgraças”.
Qualquer semelhança com o ditado “pimenta nos olhos dos outros é refresco” não é coincidência alguma. Afinal, seus tataravós açoitavam escravos e os confinavam em senzalas desconfortáveis, mas achavam isso “natural e necessário” para “certos tipos humanos”.
Essa classe enrustida, a burguesia de chinelos invisível a olho nu, é megalomaníaca e pedante, metida a intelectual e ativista. Se acha “a classe mais legal do planeta” e se julga “a mais equilibrada”, sem ter as “frescuras distópicas do pessimismo existencialista europeu” e sem o “ressentimento terrorista asiático e africano”.
A burguesia ilustrada se acha tão “predestinada” que acredita que o Brasil “de qualquer maneira” irá se transformar num país desenvolvido, bastando apenas Lula ser reeleito. É pura conversa para boi dormir, pois brincar de ser Primeiro Mundo essa classe sempre fez. Mas a burguesia enrustida se acha “especial” e, portanto, sua ambição em dominar não só o Brasil como também o mundo atinge seu nível máximo nos dias atuais, quando os netos das famílias golpistas de 1964 herdam um país que o general Ernesto Geisel mandou construir, com “médiuns espíritas” e ídolos brega-popularescos “consolando” de forma precária e paternalista o povo pobre.
E o verdadeiro povo sofre nas mãos dessa classe dissimulada que se acha “dona de tudo”: da verdade, do Brasil, do futuro, dos pobres, do mundo e até do dinheiro público, pois os netos dos beatos do capital privado passaram a gostar das verbas estatais porque elas financiam o trabalho da burguesia enquanto suas fortunas exorbitantes são reservadas para o lazer. Por isso, os netos das elites que derrubaram Jango hoje querem ver Lula governando, pelo menos, até 2030.
E aí vemos o quanto essa elite que agora apela para o bom mocismo esconde suas maldades de séculos e surfa na “democracia de um homem só” de Lula. Agora que camponeses, proletários e pessoas em situação de rua estão desacreditados e jovens e roqueiros estão domesticados, dá gosto para a burguesia fingir ser esquerdista, sem as tensões sociais que levaram ao golpe de 1964 e ao AI-5. Com a paz sem voz dos excluídos, é hora dos opressores darem uma de bonzinhos. Tudo pela lacração.
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