Quando se fala, para determinados setores das esquerdas médias - a tal "esquerda havaiana" - , que a bregalização cultural é um subproduto da mídia hegemônica, elas não gostam.
Suas reações variam entre o esnobismo e um aflito desmentimento. Julgam essa visão "preconceituosa" e, por vezes, apelam para a fantasiosa dicotomia de enfrentamento e apropriação.
Para quem não sabe, essa falsa dicotomia atribui aos ídolos brega-popularescos um suposto enfrentamento ao poder midiático e, à grande mídia, uma suposta apropriação dos fenômenos "populares demais".
Esquecem que o "popular demais" é um subproduto da mídia hegemônica que começou a ser difundido com maior intensidade durante o auge da ditadura militar.
No Brasil da memória curta, é fácil manipular a narrativa e mesmo ícones tipicamente conservadores são "redesenhados" como produtos históricos a serem defendidos por setores mais frágeis das esquerdas.
"Médiuns espíritas", mulheres siliconadas, cantores bregas reacionários, ex-políticos que na Bahia viram "âncoras de rádio", são "reinventados" por uma narrativa bastante habilidosa.
É uma narrativa em que o pensamento desejoso transforma esses ídolos do conservadorismo sócio-cultural em supostos heróis do esquerdismo brasileiro futuro.
Criam-se argumentos agradáveis, com a intensidade de uma propaganda massiva, e o pensamento desejoso acaba fazendo com que a fantasia pusesse os dados sombrios do passado debaixo do tapete, ou atribuídos a uma (falsa) teoria conspiratória.
Assim, é muito fácil transformar o passado em algo que realmente nunca foi.
Pensamento desejoso, memória curta, jeitinho brasileiro e outras manobras transformam a realidade de tempos passados numa imagem agradável e atraente, ainda que fantasiosa.
Artes da falácia, num país pouco esclarecido como o Brasil, onde as pessoas esquecem fácil as coisas.
O jornalista Ivan Lessa, da turma do Pasquim, deixou para a posteridade essa frase, que diz muito sobre tal situação:
"De 15 em 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos".
As baixarias musicais de 1990 se tornaram as "relíquias cult" dos desavisados de 2010.
Os figurões reaças de 30 anos atrás, em parte, viram supostos cavaleiros da esperança das esquerdas médias.
A década de 1990 virou um terreno fértil em que um Fernando Collor e um Mário Kertèsz, tempos depois, foram brincar de serem esquerdinhas. Collor largou a brincadeira há uns três anos.
E aí vamos para o dado curioso que causa desespero nas esquerdas médias que dão ouvidos a intelectuais "bacanas" a ponto de portais de esquerda apelarem para o "Ctrl + C / Ctrl + V" de artigos "estratégicos" trazidos por colaboradores free lancer dos barões da mídia.
A mesma mídia que popularizou a bregalização - a suposta "cultura popular" que trata o povo pobre de maneira caricatural - está agora popularizando Jair Bolsonaro.
Um texto dos acadêmicos Victor Piaia e Raul Nunes traz a revelação que sepulta a tese de que no Brasil se poderia fazer revolução socialista com glúteos rebolativos e cornos-mansos embriagados.
A bregalização cultural se deu pela mídia hegemônica, sobretudo por rádios e TVs que apoiaram a ditadura militar. Em primeiro momento, a Rede Globo estava fora dessa, nos anos 1970, talvez pela influência de gente como Walter Clark.
Emissoras como TV Tupi (na sua fase final), TV Record (depois de perder seu glamour), TV Bandeirantes e a nascente TV Studios (depois SBT) consagraram os paradigmas da bregalização cultural que domina o país.
A bregalização é, na verdade, um engodo "cultural" no qual se mistura uma obsessão em soar americanizado com a debilidade do provincianismo rural-suburbano brasileiro.
É uma relação muito mal-resolvida de valores que, no âmbito moral, se alternam entre a libertinagem lúdica e um rígido moralismo religioso, dentro de uma gama de desejos, frustrações e resignações bastante confusos e acomodados.
E aí vemos esses mesmos veículos de comunicação - atualmente, a TV popularesca é representada, no seu "baixo clero", por SBT, Rede TV! e Bandeirantes, e, por vezes, a Record TV, enquanto a Globo aposta numa bregalização explícita, mas "polida" - endeusando Bolsonaro.
Nota-se que Bolsonaro tem o mesmo apelo populista postiço da bregalização cultural, e seu apelo atinge praticamente o mesmo público alvo.
Eu, pessoalmente, ainda tento entender por que havia funcionado a narrativa que tentava promover a bregalização cultural como uma pretensa rebelião popular bolivariana no Brasil.
A intelectualidade "bacana", vinda dos porões da mídia venal, vendeu esse discurso às esquerdas às custas de muita retórica feita "à maneira de" elaboradores de narrativa como Marc Bloch (Teoria das Mentalidades) e Tom Wolfe (Novo Jornalismo).
Pois Bolsonaro é tão catártico quanto, por exemplo, ícones falsamente cult, como É O Tchan, Chitãozinho & Xororó e Gretchen.
É aquele fenômeno que desperta os instintos humanos de maneira mórbida e exagerada, seja a religiosidade, o erotismo, e a carência de alguém enérgico e autoritário para "disciplinar o país", que é o elemento em que se insere o "mito".
As diferenças de contexto fazem as esquerdas médias ignorarem o ponto fortemente comum que une Bolsonaro aos funqueiros, às mulheres siliconadas, "médiuns espíritas", antigos ídolos cafonas e a imprensa policialesca.
Todos pretensos representantes das classes populares, pretensas esperanças para o povo pobre, supostas consolações para suas vidas de miséria e terríveis limitações sociais.
Heróis de proveta produzidos por programas de televisão, empresas de entretenimento, dramaturgia, programas religiosos etc, e que representam a manipulação midiática tão inserida no imaginário popular que ela parece natural e até acima das ideologias.
É a terrível herança da ditadura e que enfraqueceu os governos do PT, permitindo o golpe de 2016: promover como "progressistas" valores sócio-culturais trazidos pela mídia hegemônica durante a ditadura militar.
As esquerdas assimilaram tais valores, devido ao apelo sentimentalista e ao aparato de pobreza e humildade. Mas se esquecem que esses valores são compartilhados, com maior entusiasmo, pelos sociopatas da Internet.
Diante disso, bregalização e bolsonarismo não são forças antagônicas, embora elas não devam ser confundidas como se fossem a mesma coisa. Em certos contextos, estas forças atuam separadas e distantes.
Mas os dois entes revelam um ponto convergente: a bregalização, com todo seu apelo "popular demais", enfraquece o povo pobre, transformado em uma caricatura de si mesmos. As periferias se transformam em Disneylândias do consumismo nas condições da pobreza glamourizada.
Com o povo pobre enfraquecido culturalmente, diante de uma "cultura popular" verticalizada vinda "de cima", do rádio e da TV, cria-se as condições de debilidade que fazem com que os próprios pobres, em parte, acabem desejando ter Jair Bolsonaro presidente.
É o chamado "pobre de direita", espécie de Frankenstein da bregalização, na qual a "ditabranda do mau gosto" carrega tanto no grotesco que acaba pedindo um mito político também grotesco.
Daí que as sensações fortes em prol da morbidez dos ídolos cafonas, do erotismo forçado das siliconadas, da "filantropia de novela" dos "médiuns espíritas", do quixotismo à direita dos apresentadores de TV policialescos e da nostalgia ruralista dos "sertanejos", só trouxeram um efeito.
Esse efeito foi a catarse do moralismo raivoso e demasiado enérgico de Jair Bolsonaro e seu visual de militar cafona. Bolsonaro também é brega e ninguém sabe.
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