Pular para o conteúdo principal

TOM WOLFE FOI "SEQUESTRADO" PELA INTELECTUALIDADE "BACANA" PARA DEFESA DO "FUNK"


Perdemos o grande escritor e jornalista estadunidense Tom Wolfe, o mais representativo ícone do Novo Jornalismo, movimento marcado pelas reportagens escritas como se fossem romances.

Ele tinha 88 anos e marcou o Novo Jornalismo ao lado de nomes como Gay Talese, Hunter Thompson, Truman Capote e Norman Mailer.

Ele escreveu sobre cultura, sobretudo sobre os movimentos dos anos 1960, sobre política, arquitetura e vários temas nos periódicos dos EUA onde trabalhou e em seus livros.

Não vou fazer uma biografia dele, sob o risco de ficar enumerando uma grande quantidade de dados, porque sua experiência era riquíssima.

Cito um livro de sua rica bibliografia, só para dar um exemplo: o livro-reportagem O Teste do Ácido do Refresco Elétrico (The Electric Kool-Aid Acid Test), de 1968.

Para os desavisados que imaginam que a década de 1960 foi só 1968 e um ano antes ou depois, o livro fala da experiência dos Merry Pranksters desde 1964.

O grupo de hippies, liderado por Ken Kesey, escritor, ativista e intelectual lisérgico, existia desde 1961 (sim, havia hippies em 1961!) e seguia uma verdadeira viagem "sem destino" com um ônibus escolar ano 1939 repintado com cores psicodélicas chamado Further.

Tom Wolfe escrevia usando uma linguagem literária, em seus trabalhos de não-ficção e ficção - o mais famoso é Fogueira das Vaidades (The Bonfire of the Vanities), de 1987 - , não só pela criatividade e fluência de texto.

Ele também se preocupava com a qualidade dos textos para estimular a leitura pelos mais jovens.

No Brasil, ele é um intelectual com expressiva popularidade. Mas também um dos quatro intelectuais que, praticamente, foram "sequestrados" pela intelectualidade "bacana", aquela geração de intelectuais que sonhava com um Brasil mais brega.

A intelectualidade "bacana" se empenhou, entre 1996 e 2017, mas com maior intensidade entre 2001 e 2014, em defender o "popular demais" (brega-popularesco), forma deturpada e mercantilizada de cultura popular.

Era um meio de enfraquecer a cultura popular, debilitando politicamente o povo pobre, mas dando a falsa impressão contrária de fortalecimento e empoderamento.

O carro-chefe da discurseira intelectual foi o "funk", ritmo que sintetiza a combinação de valores sociais retrógrados (como o machismo) e a glamourização da pobreza, com os mitos da "pobreza linda", da "periferia legal", do "ufanismo das favelas", do "orgulho de ser pobre".

A intelectualidade "bacana" usava quatro nomes do passado para montar o seu discurso.

Dois escritores eram usados para "justificar", de maneira descontextualizada e incoerente, as posturas negativas observadas no tal "popular demais", em especial o "funk".

Se os ritmos "populares demais" estão americanizados, usa-se como desculpa uma apropriação indevida e fora de lógica das teses da Antropofagia Cultural do modernista Oswald de Andrade.

Se havia baixaria, como, por exemplo, muitos glúteos rodopiantes, a mesma apropriação se dava usando o poeta Gregório de Matos, que viveu no distante século XVII.

Quanto à narrativa, as vítimas da "intelectualidade mais legal do país" foram duas.

No que se diz à abordagem temática, a intelligentzia pró-brega apelava para a História das Mentalidades, a abordagem histórica sob o ponto de vista de pessoas simples e anônimas.

O alvo, portanto, era Marc Bloch, intelectual francês morto pela repressão nazista, e que melhor representou essa técnica de narrar fatos históricos não pelos "eventos" ou "heróis", mas pelas pessoas comuns e sem vínculo com a celebridade.

A apropriação de Bloch, no caso do "funk", era para a intelectualidade "bacana" do Brasil vender ídolos comerciais como se fossem "pessoas simples", uma espécie de publicidade tendenciosa disfarçada de etnografia antropológica.

No que se diz ao texto das reportagens, a ideia é criar uma narrativa romanceada para dar um tom supostamente mais "humano" à cobertura dos ídolos "populares demais".

É aí que entra o pobre do Tom Wolfe.

Como a intelectualidade "bacana" quer ser uma intelectualidade "muito legal", num contexto de anti-intelectualismo vigente no Brasil, ela tinha que caprichar no discurso.

Daí que as reportagens eram uma beleza: texto literário, sem a preocupação fria de armas lides e sublides, de mera descrição de fatos em palavras objetivas.

Tinha que haver um trabalho de confeiteiro nos textos jornalísticos, e aí a narrativa literária de Tom Wolfe e seu Novo Jornalismo era usada levianamente pela intelectualidade "bacana" no Brasil para dar um tom "humanista" aos ídolos comerciais do brega-popularesco.

Tom Wolfe era o único vivo dos quatro usurpados vindos de épocas e lugares diferentes.

Mas "compartilhava" com os demais o suplício de sustentar abordagens tão tendenciosas sobre formas caricaturais de entretenimento.

Era um jogo sujo, movido por intelectuais vindos da mídia venal mas que, em boa parte, foi atuar na trincheira oposta da mídia progressista.

Isso foi um meio de "pegar bem na fita", garantir a fama de "bacanas" de uma parcela de intelectuais que prometiam que o jabaculê popularesco de hoje "seria" o folclore etnográfico de amanhã.

Triste situação no nosso país, e que, neste caso, fez de intelectuais como Tom Wolfe bancarem, acidentalmente, os papéis de palhaços do picadeiro retórico dos pregadores da bregalização cultural.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RELIGIÃO DO AMOR?

Vejam como são as coisas, para uma sociedade que acha que os males da religião se concentram no neopentecostalismo. Um crime ocorrido num “centro espírita” de São Luís, no Maranhão, mostra o quanto o rótulo de “kardecismo” esconde um lodo que faz da dita “religião do amor” um verdadeiro umbral. No “centro espírita” Yasmin, a neta da diretora da casa, juntamente com seu namorado, foram assaltar a instituição. Os tios da jovem reagiram e, no tiroteio, o jovem casal e um dos tios morreram. Houve outros casos ao longo dos últimos anos. Na Taquara, no Rio de Janeiro, um suposto “médium” do Lar Frei Luiz foi misteriosamente assassinado. O “médium” era conhecido por fraudes de materialização, se passando por um suposto médico usando fantasias árabes de Carnaval, mas esse incidente não tem relação com o crime, ocorrido há mais de dez anos. Tivemos também um suposto latrocínio que tirou a vida de um dirigente de um “centro espírita” do Barreto, em Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Houve incênd...

LULA GLOBALIZOU A POLARIZAÇÃO

LULA SE CONSIDERA O "DONO" DA DEMOCRACIA. Não é segredo algum, aqui neste blogue, que o terceiro mandato de Lula está mais para propaganda do que para gestão. Um mandato medíocre, que tenta parecer grandioso por fora, através de simulacros que são factoides governamentais, como os tais “recordes históricos” que, de tão fáceis, imediatos e fantásticos demais para um país que estava em ruínas, soam ótimos demais para serem verdades. Lula só empolga a bolha de seus seguidores, o Clube de Assinantes VIP do Lulismo, que quer monopolizar as narrativas nas redes sociais. E fazendo da política externa seu palco e seu palanque, Lula aposta na democracia de um homem só e na soberania de si mesmo, para o delírio da burguesia ilustrada que se tornou a sua base de apoio. Só mesmo sendo um burguês enrustido, mesmo aquele que capricha no seu fingimento de "pobreza", para aplaudir diante de Lula bancando o "dono" da democracia. Lula participou da Assembleia Geral da ONU e...

LUÍS INÁCIO SUPERSTAR

Não podemos estragar a brincadeira. Imagine, nós, submetidos aos fatos concretos e respirando o ar nem sempre agradável da realidade, termos que desmascarar o mundo de faz-de-conta do lulismo. A burguesia ilustrada fingindo ser pobre e Lula pelego fingindo governar pelos miseráveis. Nas redes sociais, o que vale é a fantasia, o mundo paralelo, o reino encantado do agradável, que ganha status de “verdade” se obtém lacração na Internet e reconhecimento pela mídia patronal. Lula tornou-se o queridinho das esquerdas festivas, atualmente denominadas woke , e de uma burguesia flexível em busca de tudo que lhe pareça “legal”, daí o rótulo “tudo de bom”. Mas o petista é visto com desconfiança pelas classes populares que, descontando os “pobres de novela”, não se sentem beneficiadas por um governo que dá pouco aos pobres, sem tirar muito dos ricos. A aparente “alta popularidade” de Lula só empolga a “boa” sociedade que domina as narrativas nas redes sociais. Lula só garante apoio a quem já está...

BURGUESIA ILUSTRADA E SEU VIRALATISMO

ESSA É A "FELICIDADE" DA BURGUESIA ILUSTRADA. A burguesia ilustrada, que agora se faz de “progressista, democrática e de esquerda”, tenta esconder sua herança das velhas oligarquias das quais descendem. Acionam seus “isentões”, os negacionistas factuais, que atuam como valentões que brigam com os fatos. Precisam manter o faz-de-conta e se passar pela “mais moderna sociedade humana do planeta”, tendo agora o presidente Lula como fiador. A burguesia ilustrada vive sentimentos confusos. Está cheia de dinheiro, mas jura que é “pobre”, criando pretextos tão patéticos quanto pagar IPVA, fazer autoatendimento em certos postos de gasolina, se embriagar nas madrugadas e falar sempre de futebol. Isso fora os artifícios como falar português errado, quase sempre falando verbos no singular para os substantivos do plural. Ao mesmo tempo megalomaníaca e auto-depreciativa, a burguesia ilustrada criou o termo “gente como a gente” como uma forma caricata da simplicidade humana. É capaz de cele...

“COMBATE AO PRECONCEITO” TRAVOU A RENOVAÇÃO REAL DA MPB

O falecimento do cantor e compositor carioca Jards Macalé aos 82 anos, duas semanas após a de Lô Borges, mostra o quanto a MPB anda perdendo seus mestres um a um, sem que haja uma renovação artística que reúna talento e visibilidade. Macalé, que por sorte se apresentou em Belém, no Pará, no Festival Se Rasgum, em 2024. Jards foi escalado porque o convidado original, Tom Zé, não teve condições de tocar no evento. A apresentação de Macalé acabou sendo uma despedida, um dos últimos shows  do artista em sua vida. Belém é capital do Estado da Região Norte de domínio coronelista, fechado para a MPB - apesar da fama internacional dos mestres João Do ato e Billy Blanco - e impondo a música brega-popularesca, sobretudo forró-brega, breganejo e tecnobrega, como mercado único. A MPB que arrume um dueto com um ídolo popularesco de plantão para penetrar nesses locais. Jards, ao que tudo indica, não precisou de dueto com um popularesco de plantão, seja um piseiro ou um axezeiro, para tocar num f...

O ERRO QUE DENISE FRAGA COMETEU, NA BOA-FÉ

A atriz Denise Fraga, mesmo de maneira muito bem intencionada, cometeu um erro ao dar uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo para divulgar o filme Livros Restantes, dirigido por Márcia Paraíso, com estreia prevista para 11 de dezembro. Acreditando soar “moderna” e contemporânea, Denise, na melhor das intenções, cometeu um erro na boa-fé, por conta do uso de uma gíria. “As mulheres estão mais protagonistas das suas vidas. Antes esperavam que aos 60 você estivesse aposentando; hoje estamos indo para a balada com os filhos”. Denise acteditou que a gíria “balada” é uma expressão da geração Z, voltada a juventude contemporânea, o que é um sério equívoco sem saber, Denise cometeu um grave erro de citar uma gíria ligada ao uso de drogas alucinógenas por uma elite empresarial nos agitos noturnos dos anos 1990. A gíria “balada” virou o sinônimo do “vocabulário de poder” descrito pelo jornalista britânico Robert Fisk. Também simboliza a “novilíngua” do livro 1984, de George Orwell, no se...

INFANTILIZAÇÃO E ADULTIZAÇÃO

A sociedade brasileira vive uma situação estranha, sob todos os aspectos. Temos uma elite infantilizada, com pessoas de 18 a 25 anos mostrando um forte semblante infantil, diferente do que eu via há cerca de 45 anos, quando via pessoas de 22 anos que me pareciam “plenamente adultas”. É um cenário em que a infantilizada sociedade woke brasileira, que chega a definir os inócuos e tolos sucessos “Ilariê” e “Xibom Bom Bom” cono canções de protesto e define como “Bob Dylan da Central” o Odair José, na verdade o “Pat Boone dos Jardins”, apostar num idoso doente de 80 anos para conduzir o futuro do Brasil. A denúncia recente do influenciador e humorista Felca sobre a adultização de menores do ídolo do brega-funk Hytalo Santos, que foi preso enquanto planejava fugir do Brasil, é apenas uma pequena parte de um contexto muito complexo de um colapso etário muito grande. Isso inclui até mesmo uma geração de empresários e profissionais liberais que, cerca de duas décadas atrás, viraram os queridões...

A RELIGIÃO QUE COPIA NOMES DE SANTOS PARA ENGANAR FIÉIS

SÃO JOÃO DE DEUS E SÃO FRANCISCO XAVIER - Nomes "plagiados" por dois obscurantistas da fé neomedieval "espirita". Sendo na prática uma mera repaginação do velho Catolicismo medieval português que vigorou no Brasil durante boa parte do período colonial, o Espiritismo brasileiro apenas usa alguns clichês da Doutrina Espírita francesa como forma de dar uma fachada e um aparato pretensamente diferentes. Mas, se observar seu conteúdo, se verá que quase nada do pensamento de Allan Kardec foi aproveitado, sendo os verdadeiros postulados fundamentados na Teologia do Sofrimento da Idade Média. Tendo perdido fiéis a ponto de cair de 2,1% para 1,8% segundo o censo religioso de 2022 em relação ao anterior, de 2012, o "espiritismo à brasileira" tenta agora usar como cartada a dramaturgia, sejam novelas e filmes, numa clara concorrência às novelas e filmes "bíblicos" da Record TV e Igreja Universal. E aí vemos que nomes simples e aparentemente simpáticos, como...

“JORNALISMO DA OTAN” BLINDA CULTURALISMO POPULARESCO DO BRASIL

A bregalização e a precarização de outros valores socioculturais no Brasil estão sendo cobertos por um véu que impede que as investigações e questionamentos se tornem mais conhecidos. A ideologia do “Jornalismo da OTAN” e seu conceito de “culturalismo sem cultura”, no qual o termo “cultura” é um eufemismo para propaganda de manipulação política, faz com que, no Brasil, a mediocridade e a precarização cultural sejam vistas como um processo tão natural quanto o ar que respiramos e que, supostamente, reflete as vivências e sentimentos da população de cada região. A mídia de esquerda mordeu a isca e abriu caminho para o golpismo político de 2016, ao cair na falácia do “combate ao preconceito” da bregalização. A imprensa progressista quase faliu por adotar a mesma agenda cultural da mídia hegemônica, iludida com os sorrisos desavisados da plateia que, feito gado, era teleguiada pelo modismo popularesco da ocasião. A coisa ainda não se resolveu como um todo, apesar da mídia progressista ter ...

O BRASIL DOS SONHOS DA FARIA LIMA

Pouca gente percebe, mas há um poder paralelo do empresariado da Faria Lima, designado a moldar um sistema de valores a ser assimilado “de forma espontânea” por diversos públicos que, desavisados, tom esses valores provados como se fossem seus. Do “funk” (com seu pseudoativismo brega identitário) ao Espiritismo brasileiro (com o obscurantismo assistencialista dos “médiuns”), da 89 FM à supervalorização de Michael Jackson, do fanatismo gurmê do futebol e da cerveja, do apetite “original” pelas redes sociais, pelo uso da gíria “balada” e dos “dialetos” em portinglês (como “ dog ”, “ body ” e “ bike ”), tudo isso vem das mentes engenhosas das elites empresariais do Itaim Bibi, na Zona Sul paulistana, e de seis parceiros eventuais como o empresariado carnavalesco de Salvador e o coronelismo do Triângulo Mineiro, no caso da religião “espírita”. E temos a supervalorização de uma banda como Guns N'Roses, que não merece a reputação de "rock clássico" que recebe do público brasile...