Felizmente, Alberto Dines não faleceu sem intervir na sociedade nos últimos anos, comandando o Observatório da Imprensa que significou um fórum de debates da mídia em geral.
Ele fez o possível para suprir nossa atualidade com suas lições de vida, além do legado do passado em que ele enfrentou sérias limitações do empresariado midiático.
Dines pagou o preço várias vezes com sua preocupação ética e com o compromisso social com a informação, mas ele preferiu a honra.
Naquela época se podia deslocar de um veículo jornalístico para outro, e havia jornalistas com mentalidade mais progressista.
Dines faleceu com 66 anos de jornalismo profissional, uma experiência significativa e batalhadora, rica e instigante, testemunhando a vida cotidiana que havia nos tempos em que se escreviam textos pela máquina datilográfica.
Havia escrito um texto para o blogue Anos 50, 60 e 70 para Principiantes, com uma breve biografia profissional do jornalista, e passei algumas horas escrevendo e pesquisando informações.
Foi anteontem à noite, no dia em que, de manhã, Alberto Dines deu adeus ao mundo confuso em que vivemos, tendo ele vivido 86 anos.
Dines enfrentou situações complicadas por causa de sua preocupação com o bom jornalismo.
Em 1961, contratado pelo Diário da Noite, de Assis Chateaubriand, foi proibido de publicar reportagem sobre um protesto de refugiados portugueses e espanhóis contra as ditaduras de António Salazar e Francisco Franco.
Mesmo assim, Dines publicou a reportagem, quando os manifestantes sequestraram um navio, o Santa Maria, que chegou ao porto de Recife, aqui no Brasil, em 21 de janeiro daquele ano.
Esta etapa do protesto durou dois dias, ou seja, até o dia 22, e um terceiro piloto, João José Nascimento Costa, foi morto pelos manifestantes.
Chatô não gostou e mandou demitir Alberto Dines. O que acabou sendo um grande benefício. Fechou-se uma porta e Dines encontrou em sua frente um grande portão.
Foi o Jornal do Brasil, periódico que mais marcou a carreira do jornalista.
Ele cumpriu tranquilamente sua atividade jornalística até que, em abril de 1964, motivos mais do que óbvios o fizeram "navegar em águas turvas".
Sim, porque chegava a ditadura militar e a ideia seria que ele, como outros jornalistas, só fizesse um jornalismo carneirinho, falando bem da que era conhecida então como "revolução democrática".
A censura e a repressão já ocorriam nos primeiros momentos ditatoriais de 1964, embora as ações se tornassem mais intensas com o AI-5.
Sabemos, agora, pela divulgação de documentos da CIA, que a tortura e repressão continuavam intensas nos períodos "suaves" dos governos de Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Aliás, foi o AI-5 o "personagem" de um episódio inusitado de Alberto Dines, uma das maiores provas de sua habilidade em enfrentar obstáculos, em nome da informação honesta e do compromisso humanista com o Jornalismo.
Dines, ao saber da notícia do terríveu "quinto ato", anunciado pela voz do locutor Alberto Curi, irmão do comediante Ivon Curi, e decidido em reunião do general Arthur da Costa e Silva e seu ministério (que incluiu Jarbas Passarinho e Delfim Netto), resolveu inovar.
Lembrando-se de que o 13 de dezembro, aliás uma sexta-feira 13, era o Dia Nacional do Cego, Dines mandou o diagramador inserir a informação no canto direito do topo da primeira página.
Era a chamada de uma nota sobre uma missa no Rio de Janeiro onde fiéis pediam proteção, na celebração do Dia do Cego.
Era uma dupla alusão. Da cegueira dos generais em ver as necessidades do povo brasileiro, mas também a cegueira que os jornalistas eram forçados a assumir ocultando a realidade em nome dos interesses da "Revolução".
No canto oposto, o esquerdo, Dines publicava uma metáfora sobre os dias difíceis do Brasil, através da previsão do tempo. Um recurso poético, diga-se de passagem.
"Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos...", dizia o texto, cujas palavras, ainda que urgentes, dificilmente reproduziriam o tom de pesadelo que muitos brasileiros só sentiriam na rotina que se anunciava.
A partir do AI-5, se desenhou uma realidade cujos paradigmas tentaram resistir até mesmo no Brasil democrático de Lula e Dilma Rousseff.
Um Brasil culturalmente brega, com feridas mal cicatrizadas, que como um vulcão adormecido revelaram preconceitos e ganâncias que voltaram com toda a força entre 2015 e 2016.
Daí que, ultimamente, despertou o inconsciente coletivo dos saudosistas de 1974, o ano em que os conservadores julgam "equilibrado" para o Brasil.
1974 era a época dos dez anos do golpe militar.
Era, também, o ano em que o "milagre brasileiro" deixava seu recado, "equilibrando" a Economia (na visão dos generais) e a sociedade brasileira estava "sob controle" (os "subversivos" foram e estavam sendo sumariamente eliminados, em nome da "segurança nacional").
Voltando à edição do JB, Dines cobriu, de forma grotesca, matérias censuradas por anúncios de classificados.
Era de propósito. Era uma forma de, pelo aspecto aberrante e feio da diagramação, denunciar que a ditadura estava impedindo os jornais de noticiarem livremente os fatos.
Dois desses anúncios apareciam na primeira página, que apresentava uma pilhéria com o general Costa e Silva.
A foto publicada foi escolhida pelo ridículo que a tomada expressava, por acidente.
Um general com olhar severo, com o corpo inclinado e pisando com a ponta dos pés, como se fosse um anão moral sofrendo de arrogância e querendo impor superioridade pisando pelas pontas.
A edição de 14 de dezembro foi antológica, e está disponível tanto na página de edições digitais do JB pelo Google quanto pela busca da Biblioteca Nacional.
Na busca da BN, através da Hemeroteca Digital, há um trabalhinho a fazer: clicar na aba "Períodos", escolher o período "1960-1969", local "RJ" e periódico "Jornal do Brasil". Depois, escolhe-se a pasta "1968" e vai para o arquivo "Edição 00213", que corresponde ao jornal em questão.
Dines também "aprontou" outras no Jornal do Brasil.
Proibido de noticiar o golpe militar no Chile, que em 11 de setembro de 1973 derrubou o governo progressista de Salvador Allende, Dines resolveu escrever um texto longo sobre o fato e colocá-lo na primeira página da edição do dia 12, no maior risco.
Mas Dines, esperto, resolveu fazer o seguinte: pedir ao diagramador que não colocasse título da matéria. Ela saiu, portanto, sem título, só com o texto, por sinal longo, que tomaria tempo do censor do jornal.
Íntegro, Dines foi demitido do JB, em junho de 1973, porque fez um artigo criticando a amizade dos donos do jornal com o governo do Estado do Rio de Janeiro.
Nesta época, o cenário político do Estado do Rio de Janeiro usava o Estado vizinho da Guanabara como vitrine. Eu era um menino de dois anos que morava na antiga capital fluminense, Niterói, nessa época.
Comandado pela ARENA, o cenário político fluminense e carioca se articulava para a fusão dos dois Estados, que causou consequências funestas que até hoje se refletem.
Hoje o Rio de Janeiro, como município e ex-Guanabara, tem que cuidar dos demais municípios do Estado, se enfraquecendo com a corrupção política, a falta de visões estratégicas e a criminalidade crescente.
E Niterói, antiga capital, hoje é uma "cidade do interior" que as próprias cidades do interior teriam vergonha de sequer pensar em ser.
Vide a aberrante tranquilidade bovina do caso de, faltando uma avenida própria de ligação, dois bairros vizinhos, Rio do Ouro e Várzea das Moças, só se comunicam pelo acesso complicado da RJ-106.
Ou seja, um episódio típico do FEBEAPÁ de Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta: uma rodovia estadual que, em Niterói, é reduzida a uma "avenida de bairro". E que, no sentido de Várzea das Moças para o Rio do Ouro, precisa passar por, pelo menos, um retorno.
Dines ainda teve que enfrentar outra demissão, em 1980, na condição de editor-chefe da sucursal carioca e articulista da Folha de São Paulo.
Foi quando Bóris Casoy (do TJ Brasil do SBT e dos comentários maldosos contra garis vazados em áudio na TV Bandeirantes) não gostou que Dines tivesse denunciado a repressão do governador paulista, Paulo Maluf, à greve de metalúrgicos do ABC paulista, naquele ano.
Foi naquela época em que o nome de um dos presos hoje chama a atenção: o líder sindicalista Luís Inácio Lula da Silva, atualmente de volta às grades em nova prisão por motivos políticos, em Curitiba.
A greve de 1980 impulsionou, justamente, o surgimento do Partido dos Trabalhadores, hoje brutalmente hostilizado pela plutocracia.
Alberto Dines teve também como virtude o fato de não se iludir com a reputação dos jornalistas.
Ele considera que a imprensa se torna perigosa se ela passa a sentir arrogância e triunfalismo de si mesma.
Em 1975, ele criou a coluna Jornal dos Jornais, na Folha de São Paulo, para analisar as atividades da própria imprensa, então preocupada em exercer autocensura.
Até mais ou menos 2002, quando a imprensa hegemônica vivia uma imagem glamourizada e até santificada do jornalista, imaginava-se que a imprensa lutava o tempo todo contra a ditadura militar.
Recentemente, se divulgou que a imprensa hegemônica apoiava a ditadura militar e apenas uma pequena parte de profissionais, como repórteres e alguns editores e articulistas, é que discordavam do regime.
Dines lançou o Observatório da Imprensa em 1994 e ele se tornou multimídia. Começou na TV, cresceu na Internet e se complementa no rádio.
A partir do Observatório, se encorajou a questionar a grande mídia, e podemos dizer que, em parte, o Observatório da Imprensa é "pai" de canais como Conversa Afiada, Brasil 247 e O Cafezinho.
Eu colaborei no portal com alguns textos, enfatizando a questão cultural e às vezes falando de política.
Foi bom, embora não tenha ganho muito em visibilidade, mas me permitiu fazer o aquecimento para produzir páginas como esta.
O Observatório da Imprensa recebia textos dos mais diversos colaboradores, no esforço de se tornar um gigantesco fórum de debates da grande mídia.
Infelizmente, a mídia hegemônica decaiu e perdeu muito de seu profissionalismo. Os interesses empresariais acabaram prevalecendo tanto que as redações se tornaram "irrespiráveis".
A geração de Alberto Dines nos deixa aos poucos, não só no Brasil.
Recentemente, perdemos um outro ilustre jornalista, o estadunidense Tom Wolfe, ícone do Novo Jornalismo (que escrevia reportagens com linguagem de romance, mas mesmo assim buscando o máximo de realismo).
E o cenário político confuso que temos só faz com que jornais demitam em massa, jornalistas autênticos deixem aos poucos a mídia hegemônica e péssimos jornalistas passem a dominar as redações.
Pessoas escrevendo muito mal passam a figurar na imprensa, obtendo visibilidade até quando seus erros repercutem amplamente nas redes sociais.
Pior: jornalistas medíocres como Merval Pereira têm o caminho aberto para a Academia Brasileira de Letras, mesmo sem lançar um livro original.
Pior ainda: um Merval Pereira - assim como, recentemente, um Kim Kataguiri que, em 2016, foi "promovido" a "colunista" da Folha de São Paulo - nem chega a montar suas próprias coletâneas de livros, deixando para editores montarem.
Eu também tenho minhas coletâneas em livros, mas elas são montadas por mim, não se limitam a uma fonte - Merval e Kim se limitam a selecionar uma única fonte na imprensa, com material previamente lançado - e procuram ter textos inéditos, alguns arquivados por mim.
Sou eu que seleciono o texto, edito e coloco em cada livro, num trabalho que defino como artesanal.
Lamentável saber que um Merval Pereira é considerado "referencial" para muitos amantes da mediocridade que expressam sua tirania nas redes sociais.
Quem quer jornalismo autêntico e honesto, independente de ideologias, fica com os verdadeiros mestres.
Aos irmãos Cláudio e Perseu Abramo, a Barbosa Lima Sobrinho, Carlinhos Oliveira, Samuel Wainer, Adalgisa Nery, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, Márcio Moreira Alves, João Ubaldo Ribeiro, Sebastião Valença Filho, Paulo Nogueira e outros que me escapam à mente, se junta Alberto Dines.
Todos eles com alguma experiência rica para contar, e que servem como lições de vida para futuros jornalistas.
O jornalismo autêntico havia sido uma batalha diferente do "jornalismo de guerra" que reduz a imprensa a um punhado de panfletos empresariais feitos para assassinar reputações.
A batalha da imprensa de outrora era o combate de ideias, não era o assassinato de reputações, mas a luta contra a opressão e a injustiça.
Era um trabalho honesto de interpretar a realidade sem trai-la, ainda que sob o preço de expressar opiniões pessoais aqui e ali. Muito diferente da onda de fake news que temos hoje.
É triste ver a imprensa tão decadente em que até jornalistas com talento e experiência como Miriam Leitão, Augusto Nunes, William Waack e até Ricardo Boechat se manchem com comentários mesquinhos por motivações ideológicas.
Resta à imprensa alternativa e ao legado do Observatório da Imprensa para nos lembrar que o jornalismo ainda existe e ele não está nos movimentos faciais de William Bonner.
Jornalistas não são heróis, a imprensa não está acima dos cidadãos, mas houve um tempo em que o jornalista trabalhava com empenho e honestidade.
Hoje a imprensa que se tomou de vaidade, com os chefões do jornalismo se vangloriando pela façanha alheia, é que perde seu caminho se promovendo com as conquistas dos outros, como coronéis e generais premiados pelo suor e sangue de seus soldados.
Alberto Dines deu muitas lições não só de jornalismo, mas de humanismo: ele teve coragem para peitar editores-chefes, donos de jornal e políticos: mas isso, mais do que um motivo para vaidade, era uma demonstração de humildade.
A verdadeira humildade não se faz pela submissão, assim como o verdadeiro triunfo não é celebrado pela vaidade. A verdadeira humildade se dá com a coragem de enfrentar obstáculos.
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