Os recentes documentos da CIA, revelados anteontem, trazem o dado chocante de que a repressão militar manteve sua intensidade mesmo na chamada "época de abertura política".
Os governos Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo eram citados num relatório como atuantes no comando de prisões, torturas e extermínios que, oficialmente, só se atribuía ao período do general Emílio Médici, quando o AI-5 começou a valer.
Isso derruba muitos paradigmas e revela debilidades das mais diversas, que ultrapassam o âmbito militar e político brasileiros.
Sobretudo diante de paradigmas conservadores, do machismo feminicida ao valentonismo (bullying), práticas criminosas, porém socialmente toleradas, e dos mitos da "caridade paliativa" e da bregalização cultural que glamourizam a pobreza e domesticam os pobres.
Para começar, derruba a ilusão de "anos dourados" de 1974-1979 ou do mito da breguice "tropicalizada" da Era Médici, que a intelectualidade "bacana", invadindo a mídia esquerdista, queria resgatar em plenas Eras Lula e Dilma.
Derruba uma série de mitos e revela debilidades sociais até hoje nunca superadas.
No machismo, por exemplo, a sociedade tem ainda os valores tão arraigados que até noticiar que um conhecido machista, membro da alta sociedade e que matou a mulher na época da ditadura, está extremamente doente, ainda causa medo e indignação da "boa sociedade".
Falar que alguém está muito doente não é ofensivo. Paciência, as elites também descuidam de seu organismo e podem adoecer gravemente, sobretudo para alguém que sofre as pressões sociais por ter cometido algum crime grave.
Não é segredo algum entre seus amigos mais queridos - a própria imprensa da época do crime noticiava isso - de que tal machista era fumante inveterado, usou cocaína no passado e que, por muita sorte, não morreu há 30 anos.
Mas a mídia abafa e, recentemente, se inventou que o machista estava "muito ativo nas mídias sociais". Na verdade, é um assessor dele que está, como ocorre em toda elite. Só faltou dizer que o velho machista virou youtuber com seus 80 anos de pulmão frágil e um rim a menos.
Se a doença de um machista rico virou tabu na sociedade conservadora, é sinal de que o atraso das elites é realmente surreal.
Há muitos paradigmas a serem derrubados, de ônibus padronizados a funqueiros, todos "herdeiros" de uma simbologia que se ascendeu na ditadura militar.
A "militarização" dos sistemas de ônibus, com uma pintura (imposta pelo poder público, que de "público" só tem o nome) imposta para diferentes empresas de ônibus, serve como "farda" para uma lógica opressiva de trabalho, que inclui um trabalho sobrecarregado dos motoristas de ônibus.
Isso inclui dupla função e horário opressivo, que faz os ônibus correrem em alta velocidade e sofrerem os acidentes que causam uma média mensal de 40 feridos e dois mortos nas grandes cidades.
A pintura padronizada também "esconde" as empresas da população (que tem dificuldades para identificar a empresa que presta mau serviço), favorecendo a corrupção que envolve políticos e empresários do setor.
Há tanta corrupção que, em muitos casos, há "renovação" de frotas com ônibus semi-novos ou ônibus velhos reencarroçados como "novos".
Em Brasília, um ônibus da Marcopolo Torino 2007, envolvido em um acidente, era na verdade um ônibus Nicola 1959 reencarroçado, que circulou quando no tempo em que Brasília era uma cidade em obras.
No caso do "funk", como em todo fenômeno "popular demais", o que se nota é que há a evocação de valores culturais impostos por veículos da mídia que, embora de grande popularidade, são ligados a oligarquias midiáticas bastante retrógradas.
Poucos se lembram, por exemplo, que o brega cresceu através de Sílvio Santos, apresentador que, recentemente, foi um dos que mais apoiaram o governo Michel Temer.
O mito da "cultura das periferias", que setores das esquerdas ingenuamente definem o "funk" e ritmos da mesma natureza popularesca, mal consegue esconder a expressão "periferia", um termo difundido pela Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso.
A própria ideologia da "pobreza linda", da "periferia legal", da glamourização da pobreza e suas práticas simbólicas (prostituição, subemprego, pirataria) era algo para alertar as forças progressistas que não deveriam apoiar essa ideologia.
O falso "cheiro de pobre" trazido pelo "funk" - apoiado por figuras como Luciano Huck e Alexandre Frota - tornou-se uma grande pegadinha para as forças progressistas.
O "funk" é patrocinado pelas Organizações Globo, que fizeram uma campanha maciça de popularização, que as esquerdas médias fizeram vista grossa.
Mas o "falso cheiro de pobre" também envolve uma das religiões que, ultimamente, mais apoiaram a Operação Lava Jato, o Movimento Brasil Livre, a Escola Sem Partido e as reformas do governo Temer, pedindo até orações em favor do temeroso governante.
É o Espiritismo catolicizado e abençoado pelos Diários Associados e pela Rede Globo, estando há quatro décadas sob a blindagem da corporação da família Marinho.
Seus midiáticos "médiuns", famosos pela psicografake literárias, pictórias e vocais, são oficialmente tidos como "símbolos de bondade máxima" pela sociedade que não gosta que pessoas como o ex-presidente Lula realmente ajudem o próximo.
Esses traidores do pensamento de Allan Kardec - não é invenção, a comparação com os livros é certeira nessa constatação - , tidos erroneamente como "progressistas", também mostram aspectos sombrios como o apoio à ditadura militar.
Um "médium" de Minas Gerais, que usurpou Humberto de Campos e enganou seus herdeiros, foi entrevistado num programa de TV e manifestou apoio explícito à ditadura militar. Chegou a falar mal de camponeses, operários e sem-teto e condenou governos com "tendência esquerdizante".
O dito "homem-amor" disse que os generais estavam desenvolvendo um "reino de amor". O "médium" era conhecido pela defesa da aceitação do sofrimento, de preferência "calado", como se fosse uma atitude nobre ficar "engolindo sapos" e aceitando quieto qualquer desgraça.
O "médium" chegou a ser definido pelos críticos desse Espiritismo deturpado como "AI-5 do bem". Os defensores, por outro lado, viam nesse religioso a "personificação do amor".
Essa imagem de "homem-amor" não é mais que uma mitificação piegas, digna de melodrama novelesco, montada com a ajuda de Assis Chateaubriand e Roberto Marinho.
Ainda que exista vida futura e reencarnação, elas são um mistério. Se a Ciência obtém dificuldades para analisar como é a vida nos outros planetas, mais difícil e complicado é analisar a vida no além-túmulo, um mistério do qual não há vestígio algum que trouxesse um indício cogitável.
O "médium" criou, no entanto, um "mundo espiritual" feito ao sabor de suas paixões materialistas, para justificar as desgraças vividas pelos cidadãos comuns.
É uma perversidade, uma imoralidade: forjar um "paraíso" para que as pessoas aceitem os "infernos de vida" que estão sofrendo.
A "maior bondade" desse "médium" (na verdade um arrivista de fazer o Marcelo Nascimento ficar babando de inveja) é considerada, pelos críticos do Espiritismo deturpado, uma grande perversidade.
No auge da ditadura militar, a suposta produtividade de "cartas mediúnicas" foi um estranho fenômeno que só favoreceu o sensacionalismo da imprensa que adora eventos aberrantes desse porte.
Além das cartas serem fake, contra as quais há denúncias sérias de fraudes motivadas por leitura fria ou pesquisas em livros e imprensa, além das assinaturas que não batem entre o espírito quando vivo e o suposto morto, elas traziam aspectos sombrios e um propósito cruel.
Os aspectos sombrios eram as energias pesadas e a falsa "energia positiva" da catarse nos "centros espíritas", inclusive uma técnica de manipulação mental das mais traiçoeiras chamada de "bombardeio de amor", armadilha já alertada por especialistas em neurolinguística do exterior.
O propósito cruel é que, numa época em que havia extermínio de pessoas nos porões da ditadura e nas convulsões sociais - inclusive a violência no campo e o feminicídio - , as "cartas mediúnicas" faziam as pessoas não só se contentarem com as tragédias, mas até a ficarem felizes com elas.
Elas não chegaram a serem felizes, é claro, mas o propósito desse Espiritismo rebaixado a um Catolicismo medieval restaurado, os deixava próximos ao contentamento, na ilusão de que os mortos, impedidos de levar sua vida adiante (vários eram muito jovens), "hoje vivem no Paraíso".
Isso é muito terrível. E faz o Espiritismo catolicizado do Brasil ser muito mais cruel do que todas as seitas pentecostais juntas.
O mais grave é que esses midiáticos "médiuns", que usurpam os nomes dos mortos para promoção própria, também se promovem com uma caridade bastante frouxa, baseada em medidas paliativas que, no dizer dos críticos dessa doutrina, "aliviam a dor sem curar a doença" da pobreza.
Esse paradigma religioso, que durante muito tempo vendeu a falsa imagem de "progressista" e ainda espera do Brasil a condição perigosa de uma teocracia imperialista - sob os eufemismos "coração do mundo" e "pátria do Evangelho" - , é uma das heranças da ditadura que poucos reconhecem.
Outro paradigma é o reacionarismo dos bolsonaristas que acham que a ditadura militar será a salvação do Brasil.
Pesquisas no Rio de Janeiro apontam que, sem Lula, Jair Bolsonaro é favorito para ser eleito presidente da República. Para o Senado, seu filho Flávio aparece em primeiro lugar.
Isso é ruim. Com a fama de truculentos dos bolsonaristas e seu apetite para exterminar comunistas, o velho fantasma da ditadura militar ronda ao redor deles, com um pesadelo que só os acomodados cariocas (e os demais fluminenses) não conseguem ver.
Os paradigmas herdados da ditadura militar continuaram sobrevivendo depois de tantos anos de redemocratização, como um vulcão adormecido que parece extinto mas em dado momento ressurge em trágica explosão.
É uma grande, viciada e nociva zona de conforto manter esses paradigmas, usando qualquer tipo de desculpa, que vai desde os pretextos de "palavras de amor" até a "dialetos" juridiquês, tecniquês ou neolibelês.
É certo que esses paradigmas não aparecem nos documentos da ditadura militar.
Mas eles se sustentaram num sistema de valores próprio da época, e só sobreviveram porque houve desculpas bem armadas para que tais valores retrógrados sobrevivessem acima dos tempos.
A grande lição é a sociedade perder o medo e considerar tais valores decadentes e obsoletos. Não se faz um novo Brasil com velhos entulhos que muitos insistem em tratar como tesouros.
Comentários
Postar um comentário