Pouco mais de vinte dias após o incêndio do Museu Nacional, que fez perder boa parte do nosso acervo cultural - vários livros sobre botânica e antropologia, raríssimos, se perderam - e só uma parte foi salva e outra, reconstituível em impressão 3-D, temos um cenário bastante incendiário.
O fenômeno Jair Bolsonaro, mesmo tendo um favoritismo fake, causou susto até no resto do mundo.
Para piorar, o filho Flávio Bolsonaro também é um perigo por ser um dos mais cotados para o Senado pelo Rio de Janeiro, ao lado do "ficha-suja" César Maia.
A ascensão do bolsonarismo foi favorecida por uma série de condicionamentos culturais aqui e ali.
E isso vem sobretudo desde os anos 1990, embora houve práticas antecedentes.
Isso porque a combinação de coronelismo midiático (fruto das políticas de compadrio do governo José Sarney) e o empresariado do entretenimento na degradação cultural brasileira trouxe os elementos que hoje culminam na ascensão do fascismo.
O tucanato e a intelectualidade "bacana" são em boa parte responsáveis por isso.
Os tucanos sempre estiveram defendendo políticas neoliberais em detrimento das progressistas, de forma a fazer com que o apetite das elites se transformasse na gula voraz dos últimos anos.
A intelectualidade "bacana" agia defendendo o "livre mercado" da bregalização cultural, induzindo as classes populares a terem orgulho da própria pobreza, pavimentando o comportamento para receber as reformas retrógradas de Michel Temer, que Bolsonaro quer radicalizar.
Era aquele papo hipócrita do "combate ao preconceito".
Tudo na pobreza era "lindo": casas caindo aos pedaços, o trabalho humilhante da prostituição, o comércio informal que vendia piratas e contrabandeados, a baixa escolaridade, o alcoolismo como fuga das frustrações sociais.
A "Disneylândia" de lixo, lodo e casas mal-construídas da "periferia" de Fernando Henrique Cardoso que a "santíssima trindade" da intelectualidade "bacana" empurrou para as esquerdas.
Com isso, "Deus Pai, Filho e Espírito Santo", ou seja, Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna criaram uma "ditabranda do mau gosto" que escondia interesses mercadológicos estratégicos.
Era a ideia de sobrepor a bregalização cultural ao nosso rico patrimônio cultural era feito com uma série de falácias bem construídas, embora, evidentemente, discutíveis em muitos aspectos.
Se fosse para promover um debate, tudo bem, mas a intelectualidade "bacana" deixava subentendido: questionar o brega-popularesco (que denominam "popular demais") é "higienismo" e "preconceito elitista".
Eles diziam que a gente "não precisava gostar" do brega-popularesco, mas tinha que "reconhecer seu valor".
A conversa do "combate ao preconceito" foi como uma resposta tardia da "geração IPES" e seus sucessores (alguns tocando o Instituto Millenium) aos CPCs da UNE, o antigo coletivo de debates culturais autênticos que funcionou entre 1961 e 1964.
O acesso à cultura não era democratizado, porque só as elites é que apreciavam a cultura de verdade, e, mesmo assim, parte dela se dizia "cansada de tudo isso".
Esses intelectuais pró-brega representavam os pontos de vista dos grupos Globo, Folha e Abril, os maiores interessados pela bregalização que enfraquecia o povo pobre e o deixava refém de formas comerciais, estereotipadas e caricaturais de expressão.
Mas, entre o oportunismo, o cinismo e a dissimulação, parte desses intelectuais fazia pregações nas páginas esquerdistas de Caros Amigos, Carta Capital, Fórum, Brasil de Fato e o que vier.
E isso criou as condições do imobilismo social e político das classes populares. Iludidas com a falácia de que dançar o "funk", "sertanejo" etc era "ativismo social", o povo pobre foi jogado ao analfabetismo político.
Vulneráveis, foram seduzidos por pregadores religiosos que lhe apontaram como caminho o fascismo de Jair Bolsonaro. Na tentativa de "esquerdizar" o "popular demais", criou-se o "pobre de direita".
No plano político, recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, guru não-assumido da intelectualidade "bacana", deu uma declaração um tanto oportunista.
Ele pediu para que as forças políticas não-extremistas se unissem para conter o fenômeno Bolsonaro.
FHC chegou a dizer que votaria em Fernando Haddad contra o candidato do PSL, no segundo turno.
O grande problema é que FHC e seu PSDB provocaram o "incêndio" que queimou o cenário político recente.
Derrotado nas urnas, Aécio Neves conspirou para derrubar Dilma Rousseff. Paralelamente ao pragmatismo conservador dos cariocas, "doença" que os contagia desde os anos 1990, veio Eduardo Cunha, do PMDB do vice Michel Temer, ajudar a concretizar a raiva aecista.
O golpe foi consolidado e a potencial fúria popular foi amenizada pelo "mui amigo" Rômulo Costa, da Furacão 2000, com boas relações com Luciano Huck, executivos da Globo e políticos cariocas do PMDB e PSD, fingir que era "bolivariano de carteirinha".
Como Cabo Anselmo na Revolta dos Fuzileiros (1963-1964), Rômulo Costa foi definido como "solidário à causa petista", mas o que ele fez foi "tranquilizar as feras" para que os deputados federais reacionários, "em nome de Deus e da Família", votassem pelo "Fora Dilma".
Entre eles, Jair Bolsonaro, que também votou "em nome de Deus e da Família", mas também em memória ao torturador Brilhante Ustra.
O golpe de 2016 resultou numa louca cavalgada da plutocracia, que com a seletividade do Legislativo e do Judiciário, inocentava corruptos de direita e incriminava falsos corruptos progressistas.
Com o tempo, só para dar a impressão que "a lei é para todos", incriminaram políticos menos expressivos do PMDB, PSDB e outros partidos conservadores, só para "mostrar serviço".
Mas aí abriu-se o caminho para o fenômeno Bolsonaro, que também foi "fortalecido" pelas pesquisas eleitorais patrocinadas pelo "posto Ipiranga" Paulo Guedes.
Diante disso, o Brasil ardeu em chamas diante da ascensão, fabricada porém preocupante, de um fascista que pretende liberar o porte de armas, privatizar todas as estatais e precarizar o mercado de trabalho.
Fernando Henrique Cardoso, que participou do incêndio provocado pelo PMDB-PSDB, agora se oferece a ser o "bombeiro" da situação.
Seu braço-cultural, Pedro Alexandre Sanches, renegando no discurso a herança recebida de FHC e do finado Otávio Frias Filho, dentro da postura "odiar o professor e adorar seus ensinamentos", também se apressou para "apagar o incêndio" da bregalização.
Depois que o Ministério da Cultura quase foi extinto e a Lei Rouanet passou por uma devassa, o "filho da Folha", que também viu o "desembarque" de seus "heróis" (como Joelma e Zezé di Camargo), teve que maneirar.
Sanches teve que se conter até da antiga hidrofobia de sotaque folhista contra Chico Buarque (um dos mais elegantes apoiadores do PT que o farofafeiro diz apoiar nas redes sociais) e afins.
Atualmente, apesar de Pedro ser o líder do blogue Farofafá, ele e seu escudeiro Eduardo Nunomura, na prática, foram "podados" por Jotabê Medeiros, vindo de outro blogue.
Jotabê Medeiros é, neste contexto, uma espécie de Roberto Pompeu de Toledo do Farofafá. Toledo é um jornalista autêntico que faz contraponto ao panfletarismo hidrófobo de Veja.
Isso porque tiveram que ser "mais jornalísticos" e "menos panfletários", para justificar o contrato com a Carta Capital. Tem que se lutar a batalha da trincheira adversária.
Hoje o "popular demais" se revela majoritariamente bolsonarista, e o "funk" ficou establishment demais para brincar de ser bolivariano.
E o "combate ao preconceito" gerou sérios danos, porque o foco do preconceito se voltou para a cultura de verdade.
Não funcionou, sob os pretextos de "fim do preconceito" e "reconhecimento da arte das periferias", apoiar uma "cultura popular" imposta por rádios oligárquicas, imprensa policialesca e televisão popularesca.
A retórica dos intelectuais "bacanas" só serviu para alimentar as convicções sócio-culturais dos sociopatas da Internet, que de uma forma ou de outra eram chegados a uma cafonice.
E aí o preconceito se voltou para nosso patrimônio, para o Museu Nacional que a intelectualidade "bacana" convidava para o desprezo, porque nosso legado cultural, riquíssimo, era "peça de museu" e os museus, porões do esquecimento popular.
Nossas raízes sócio-culturais, explicáveis por estudos antropológicos e geográficos, se perderam sob o fogo causados pela intelectualidade pseudo-progressista que fazia crer que o patrimônio do povo pobre era sua própria pobreza.
E assim, diante da ameaça fascista, neoliberais da política e da cultura tentam dar uma de progressistas bonzinhos, depois de oferecer as condições para o golpe político sem freio.
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